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Wolff (1997) – «o que é?» e «por que?»

WOLFF, Francis. Dire le monde. Paris: PUF, 1997

A perenidade das interrogações filosóficas fundamentais e sua estrutura dual

  • As indagações «o que é?» e «por que?», apesar das mutações históricas dos conceitos e das demandas culturais, permanecem como os dois modos de interrogação fundamentais e ineludíveis para qualquer tentativa de compreensão teórica do mundo, resistindo à pretensão positivista de substituí-las pelo «como» ou à estratégia antiessencialista de dissolvê-las em circunstâncias de «onde» e «quando». A história da filosofia pode ser interpretada como a alternância cíclica entre a primazia de uma e de outra — Platão e Descartes inclinando-se para a essência, Aristóteles e Leibniz para a razão, Husserl e Heidegger em tensão análoga —, sugerindo que as filosofias singulares constituem maneiras originais de nodular essas duas questões ou tentativas de reduzir uma à outra. Por trás de toda vontade de saber, persiste a exigência de determinar simultaneamente o que as coisas são em sua realidade última, para além das aparências, e por que elas ocorrem desta maneira e não de outra, configurando um problema metafísico central sobre o fundamento que distingue e articula essas duas visões sobre um mesmo mundo.

A metafísica do «o que é?»: o mundo das coisas e a identidade absoluta

  • A radicalização filosófica da pergunta ordinária «o que é isto?» pressupõe e projeta um mundo constituído por coisas singulares, reais e completamente determinadas, visando alcançar a ipseidade de cada ente, entendida como aquilo que o torna único e distinto de todos os outros, e a sua identidade, entendida como a permanência numérica do indivíduo enquanto é. A satisfação plena dessa vontade de saber exige um mundo onde não existam classes ou espécies, pois classificar um indivíduo seria diluir sua essência singular no que ele tem de comum com outros; neste mundo ideal, a multiplicidade é sinônimo de diferença absoluta, compondo-se de uma infinitude de mônadas isoladas, sem portas nem janelas, onde cada coisa coincide tão perfeitamente consigo mesma que o próprio devir se torna impossível.
  • Neste horizonte ontológico governado pela questão da essência, a única relação possível é a de equivalência — reflexiva, simétrica e transitiva —, onde «ser» significa estritamente «ser o mesmo que» ou «ser a própria essência», excluindo qualquer contingência, alteração ou grau de existência. A perfeição deste mundo reside na saturação de cada um de seus elementos, que são plenos de seu próprio ser e independentes uns dos outros; contudo, essa perfeição implica que tal agregado de essências isoladas não constitui propriamente um mundo, pois lhe falta a insaturação ou o liame que unificaria a diversidade infinita das coisas em uma totalidade coerente.

A metafísica do «por que?»: o mundo dos eventos e a regressão infinita

  • A interrogação «por que?», quando levada à sua radicalidade filosófica, não visa coisas estáticas, mas eventos ou estados de coisas, instaurando uma busca pela razão de ser daquilo que sobrevém e que, por natureza, implica uma estrutura de reenvio perpétuo. Ao contrário da identidade reflexiva, a lógica do «por que» define uma relação de ordem estrita — transitiva, assimétrica e irreflexiva — que gera necessariamente uma cadeia infinitamente regressiva, onde cada evento depende de um anterior para sua explicação, sem que jamais se possa alcançar um termo inicial ou uma autojustificação, pois um evento isolado e independente deixaria de ser evento para se tornar coisa.
  • O mundo ideal projetado por essa interrogação é uma série infinita de eventos encadeados causalmente, constituindo uma totalidade saturada de conexões onde cada elemento ocupa um lugar determinado pela sua relação com os outros; no entanto, a contrapartida dessa perfeição sistêmica é a vacuidade ontológica de seus constituintes, visto que nenhum evento possui ser em si mesmo, sendo definido exclusivamente pela sua dependência e insaturação. A contradição interna deste mundo reside no fato de que a explicação total é sempre diferida para um outro, de modo que a consistência do todo depende de uma totalização impossível de uma série que, por definição, não tem fim.

O imperativo do estancamento e a contradição do princípio metafísico

  • Diante da vertigem da regressão infinita imposta pela lógica do «por que», a tradição metafísica, exemplificada pela demonstração em Aristóteles, impõe a exigência de um estancamento, postulando a necessidade de princípios indemonstráveis ou causas primeiras para evitar a dissolução do saber no infinito ou no raciocínio circular. Esse ponto de parada — seja ele o Princípio de Contradição, o Bem Supremo, a Substância, a Causa de Si ou Deus — opera uma traição à lógica transitiva do evento ao introduzir uma estrutura reflexiva de tipo «coisa» no início da cadeia causal; o primeiro elo é declarado «sem porquê» ou «causa de si», dobrando a relação transitiva sobre si mesma para mimetizar a autossuficiência da essência e assim fundar a série.
  • Essa manobra revela uma tensão insolúvel: a necessidade do fundamento exige a busca pela razão (o «por que»), mas a descoberta do fundamento exige a suspensão dessa mesma busca, convertendo o evento explicativo em uma entidade que é o que é (o «o que é»). O princípio metafísico surge, portanto, como um híbrido conceitual que tenta satisfazer a demanda de explicação total paralisando o movimento que a constitui, impondo uma finitude necessária a um processo que, por sua natureza lógica, tenderia ao infinito.

A situação mediana do mundo real e os conceitos híbridos

  • O nosso mundo real situa-se numa posição mediana e imperfeita entre esses dois mundos ideais incompatíveis — o da identidade absoluta e o da causalidade infinita —, o que se evidencia na contaminação mútua dos dois grandes princípios de raciocínio: o princípio de identidade não se realiza plenamente porque as coisas mudam e suportam contradições temporais, e o princípio de razão suficiente falha porque a regressão causal precisa ser arbitrariamente interrompida por fatos brutos ou liberdades. A história da metafísica é pródiga na produção de conceitos intersectivos destinados a habitar essa zona intermediária, como o conceito de Tempo, que amalgama a permanência necessária à coisa (para que não seja pura sucessão instantânea) e a sucessão necessária ao evento (para que não seja pura eternidade estática).
  • De modo análogo, o conceito de Deus oscila entre a exigência grega de um Ser Supremo absolutamente idêntico e imóvel, que responde à pergunta «o que é o ser?», e a exigência hebraica de uma Vontade Criadora e causa histórica, que responde à pergunta «por que há algo?», resultando na teologia racional como uma tentativa de conciliar a identidade ontológica com a causalidade transitiva. Os conceitos de Substância e Fundamento funcionam como os pilares dessa arquitetura mestiça: a substância é a coisa que permanece (identidade) servindo de suporte ao que lhe acontece (evento), submetendo o «por que» ao «o que é»; o fundamento é a razão de ser (causalidade) que se põe como autossuficiente (ipseidade), submetendo a cadeia de eventos a um ponto fixo quase-coisal.

A virada crítica: o isomorfismo entre linguagem e mundo

  • A impossibilidade de aceder plenamente aos mundos puros da essência ou da causa não deve ser lamentada como uma finitude cognitiva, mas compreendida positivamente através da análise crítica da linguagem, assumindo-se um isomorfismo onde o mundo nos aparece estritamente segundo a estrutura da nossa linguagem predicativa. O mundo das coisas puras corresponderia a uma linguagem-mundo nominal, feita exclusivamente de nomes próprios que capturariam a essência total de cada indivíduo, permitindo saber tudo de uma só vez, mas impossibilitando qualquer discurso articulado; o mundo dos eventos puros corresponderia a uma linguagem-mundo verbal, feita de verbos impessoais que expressariam o fluxo total do devir, permitindo explicar tudo, mas impedindo a referência a qualquer sujeito estável.
  • O nosso mundo, estruturado na forma «S é P», é o correlato de uma linguagem que opera a síntese predicativa entre um sujeito (que mimetiza a estabilidade da coisa sem ser uma essência absoluta) e um predicado (que mimetiza a acidentalidade do evento sem ser um fluxo puro). A cópula «é» constitui a cola lógica que permite atribuir o devir ao ser, o evento à coisa, possibilitando a interlocução e a objetividade ao custo de renunciar tanto ao conhecimento absoluto da essência singular quanto à explicação causal total.

A fecundidade da predicação e a alegria da finitude

  • A estrutura predicativa do nosso linguagem-mundo revela que a realidade não é nem um agregado de mônadas incomunicáveis nem um fluxo heraclitiano inapreensível, mas um tecido de sujeitos e predicados onde a identidade é concedida sob a forma de referência e a alteridade sob a forma de asserção. A substância nada mais é do que a hipóstase do sujeito gramatical necessário à predicação, assim como o fundamento é a projeção da necessidade lógica de encerrar a cadeia das razões em um sujeito último.
  • Longe de ser uma deficiência, essa constituição híbrida é o que permite a discursividade infinita: podemos falar das coisas indefinidamente, atribuindo-lhes sempre novos predicados, sem jamais esgotar o que elas são ou por que elas são, garantindo assim que o mundo permaneça aberto à investigação e à comunicação humana. O abandono do sonho metafísico de uma coincidência total com a coisa ou com a causa libera o pensamento para a exploração inesgotável das verdades predicativas, onde o mundo se dá a conhecer na exata medida em que pode ser dito e partilhado entre interlocutores.
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