Concordância entre platonismo e Cabala em Reuchlin (Vieillard-Baron)
JLVB1988 Em que sentido pode haver concordância entre o platonismo, doutrina grega estabelecida à luz da razão, e a Cabala, doutrina esotérica judaica? É preciso notar, primeiro, que Reuchlin relativiza os procedimentos esotéricos da Cabala. “Dividirei”, escreve ele, “a ciência da Cabala em ciência das Sefirót e dos Shemot, isto é, dos números e dos nomes, como em ciência prática e especulativa”. Assim, por exemplo, pode-se notar uma equivalência numérica entre as letras da palavra Zelem (a cruz) e as da palavra Ez (a madeira), que, pela geometria, ambas resultam em 150. Portanto, é fácil passar de uma à outra, da cruz à madeira, e da madeira à cruz. Sob esse ponto de vista numerológico, podem-se encontrar relações entre o platonismo e a Cabala. Reuchlin, muito atento às proporções numéricas do Timeu, indica que o pitagórico parte do Uno e da Díade infinita, ou seja, da transcendência e da matéria; o Uno, fonte de Tudo, reflete-se em si mesmo “por meio da unidade e da dualidade”, o que resulta, pode-se admitir, no 4, a Tétractis ou “Quaternidade”. A partir daí, os quatro primeiros números somados (1, 2, 3 e 4) dão dez. Este é o número decimal, caro a todos os cabalistas cristãos. Ora, esse número dez não é outro senão o das dez Sefirót da Cabala. Não se pode explicar aqui em detalhes o que são as Sefirót; cada uma simboliza um aspecto emanado da divindade, no sentido de que essas qualidades ou atributos de Deus assumem uma existência independente, como os anjos na simbólica cristã. “O anjo é a alteridade, assim como Deus é a unidade”, diz Reuchlin em outro lugar. Esses procedimentos não devem ser considerados essenciais, fundamentais. Reuchlin afirma precisamente que são “bufões infames da filosofia” os que fizeram crer que “Pitágoras teria ensinado que o número é o princípio de todas as coisas”. É uma estupidez “tomar ao pé da letra e fora de qualquer metáfora essa parte tão divina da filosofia de Pitágoras que trata dos números”. O mesmo vale para a Cabala: a decifração das letras e dos números é um procedimento pedagógico; esses métodos são intencionalmente difíceis para incitar o aprendiz a buscar o que está oculto no abismo. Aqui, em sua interpretação da numerologia e da alegoria, Reuchlin é muito platônico. Daí resulta que a própria noção de iniciação e de segredo das doutrinas se esvai e é esquecida. Não se pode deixar de notar a discrição de Reuchlin a esse respeito. Ele quer corrigir a rigidez da tradição talmúdica nesse aspecto: de fato, os segredos da Cabala não deveriam ser revelados a pessoas não iniciadas no rito judaico. “Ousarei”, diz Simão, o interlocutor judeu do diálogo De Arte Cabbalistica, “moderar a dureza dos preceitos. Não vejo eu a luz do sol dispensada a todos sem distinção, uma vez afastado todo obstáculo?” Certamente, a doutrina de Moisés não foi exposta claramente, “por medo de que esses mistérios, por falta de compreensão, fossem aviltados aos olhos de um povo grosseiro e inculto”. Mas, como os tempos mudaram, o perigo de profanação diminuiu, e a exigência de universalidade aumentou. Poderá ser iniciado todo homem que busca verdadeiramente a ciência sagrada, pois “não há boa Cabala senão com um coração bom”. Na realidade, Reuchlin distingue cuidadosamente “a Cabala” e “a arte cabalística”. Pois “a Cabala é esse fruto de ouro divino envolto por fios de prata, ou seja, pelas doutrinas e pelas artes engenhosas dos homens”. É preciso olhar atentamente para ver o ouro. A iniciação verdadeira, tanto no platonismo quanto na Cabala, é o aprendizado da razão superior, que Reuchlin chama de Mens (espírito). A classificação dos gêneros de conhecimento no início do Livro I do De Arte Cabbalistica suscitou muitos ecos entre os esoteristas. Retenhamos apenas uma coisa: a Mens é a mestra dos dez graus do conhecimento e está acima da lógica. Reuchlin prestou homenagem a Nicolau de Cusa por ter estabelecido como princípio do conhecimento supremo a Coincidentia oppositorum; para ele, em matéria de coisas divinas, “a própria razão do homem não é a mestra, mas sim uma noção mais nobre, na qual a luz da Mens, incidindo sobre o intelecto, provoca a livre vontade de crer”. O exercício da Mens no domínio metafísico não se chama ciência (scientia), mas conhecimento (notitia). Há um conhecimento sagrado, de ordem especulativa, que é superior a todos os outros e traz em si mesmo sua evidência. Alcançar essa ciência sagrada supõe o silêncio e a noite. É preciso crer no verbo, saber calar-se e compreender inteligentemente. “As realidades divinas em todo o seu esplendor não poderiam ser vistas por nossos olhos de corujas através de sofismas de velhos. Mas será necessária… a fé e a capacidade de calar-se”. Trata-se do silêncio interior necessário ao que a mística renana chama de Gelassenheit (abandono). Esse silêncio é indispensável à visão espiritual, visão da qual Reuchlin lembra que o Corão a povoa de “jovens muito belas, semelhantes ao berilo e a pérolas preciosas, que jamais foram violadas por homens ou demônios e que nunca serão perturbadas pelas regras”. Essas realidades celestes, descritas alegoricamente, são o próprio objeto da visão espiritual. “Se esses homens seguissem o sentido espiritual e a iluminação sutil da Mens, compreenderiam que há mais verdade nas realidades que não se veem do que naquelas que se veem”. As huris do paraíso de Alá são, portanto, mais verdadeiras do que as jovens terrestres. A natureza da visão espiritual é explicada etimologicamente: o verbo grego theásthai (contemplar, ver) deriva da palavra theós (deus), da qual vem também theía (contemplação). Pode-se, portanto, legitimamente chamar os deuses de contemplativos, pois a visão é o que iguala a Deus; tornar-se semelhante a Deus significa a fuga do mundo sensível. O acento platônico nos remete aqui ao Teeteto, e a etimologia ousada de Reuchlin diz mais do que ele explica. A nota original que o humanista alemão acrescenta é o prazer da visão, simbolizado pelos deleites do paraíso de Alá. Por fim, em conformidade com a tradição platônica que vai de Platão a Mestre Eckhart, a visão se caracteriza pela reciprocidade: “Assim como não vemos o sol se o sol não nos olha, também não podemos ver o mundo superior se ele não nos vê também: pois ele é inteiramente um olho mais claro do que o sol”. O sol simboliza Deus em pessoa, ao mesmo tempo objeto e agente da visão interior do homem. Aqui, platonismo e Cabala concordam, ainda que o acento platônico predomine.
