Breve percurso histórico das paixões
Michel Meyer, Meyer1991
As catorze paixões de Aristóteles transformaram-se, com Santo Agostinho, em três vícios matriciais, todos eles confundidos no pecado original de que derivam. Adão pensou que podia tornar-se igual a Deus mordendo a maçã, condenando desde então a natureza humana à queda. O pecado da carne, mas também o pecado do orgulho e, evidentemente, o pecado do controlo dos frutos do Jardim do Éden, como se o homem fosse dono deles, quando só Deus lhe tinha permitido viver ali. As grandes paixões, fontes de todas as outras, serão o poder, o prazer e a luxúria. O bom cristão será aquele que fizer um voto de humildade, de pobreza e de castidade.
Toda a visão do homem foi alterada, deixando uma marca indelével no Ocidente. Mas de 1500 a 1900, as datas que separam Maquiavel de Freud, as três paixões matriciais foram-se progressivamente encontrando, se não reabilitadas, pelo menos parcialmente legitimadas, esvaziando-se assim de todo o conteúdo a natureza humana tal como tinha sido definida desde e com o cristianismo. Daí o niilismo contemporâneo. Mas também a possibilidade, hoje renovada, de harmonizar a paixão e a razão, reconsiderando-as.
Santo Agostinho, mais preocupado com a cidade de Deus do que com a cidade do homem, condenou a vaidade, a busca do prazer e a acumulação de bens materiais sem os teorizar verdadeiramente. Com Maquiavel e Hobbes, assiste-se a uma primeira inversão: a libido dominandi passa a ser dita. Há uma racionalidade na paixão política, que pode assim recuperar o lugar que lhe cabe na sociedade. Dois séculos mais tarde, a paixão económica torna-se, por sua vez, “normal”, e o estigma que lhe estava associado desde a condenação tomista dos empréstimos com juros desaparece com ela. Tornou-se legítimo querer enriquecer e acumular, pois isso contribui para o bem-estar coletivo, constituído pela soma das riquezas individuais. É a tese de Adam Smith, que reabilita a paixão material sob a forma de juros. Trabalho, vida, linguagem”, diz Foucault. A biologia, e portanto a reprodução das espécies, a sexualidade, que, por instinto, vai dar origem à representação (inconsciente) e assim engendrar a paixão, é uma das grandes tendências que encerraram o século passado. Freud chegou ao fim do caminho e, no que nos diz respeito, deu um estatuto teórico à paixão carnal.
O círculo está agora completo. Todas as paixões podem ser expressas. Podem ser modificadas e substituídas umas pelas outras. Note-se, aliás, a permutabilidade dos conceitos: o gozo, a posse, a vontade de poder aplicam-se tanto aos seres que amamos como às coisas que possuímos ou às posições que ocupamos. Para lutar contra a tradição agostiniana e dar relevo às paixões cardeais, foi preciso isolá-las e enfrentar a crítica de substituir uma paixão primária, como a sexualidade (em Freud), a vontade de poder e a vaidade (em Hobbes) ou o interesse (em Smith). Na realidade, a paixão define-se precisamente pela procura de equivalentes, de substitutos que as satisfaçam em parte, as exprimam e as substituam ao mesmo tempo. Voltaremos a este assunto mais tarde. Para já, sublinhemos que nenhuma sociedade deixa estas paixões desreguladas. Nenhuma troca de mulheres é arbitrária, tal como nenhuma troca económica é desregulada, para não falar do acesso ao poder (a troca de cargos e funções), que também é sempre codificado: a liberdade total não tem, evidentemente, outra realidade que não seja ilusória. As paixões, mesmo quando libertadas, encontraram o seu antídoto na própria teorização. Montesquieu contra Maquiavel, Marx contra Smith, e provavelmente Freud contra si próprio. Além disso, a nossa sociedade controla as paixões à sua maneira. Existe uma legislação democrática sobre a eleição e a elegibilidade de todos os cidadãos, que podem assim exprimir o seu desejo de poder em relação aos outros, tal como o fazem em relação a si próprios. A prossecução dos interesses materiais também está sujeita a restrições, mesmo quando há liberalização, uma vez que obedece a regras de concorrência que se pretendem justas. A afetividade e o vínculo sexual também não estão isentos de socialização, mesmo que esta já não se exprima através de alianças parentais prévias ou do simples exercício da violência, que continua a ser condenada. A violência continua a ser o perigo associado a toda a paixão, uma vez que o poder, o gozo e a expressão do “grande eu” existem lado a lado, para além da equivalência de palavras que salientámos e que ilustram esta substituibilidade.
