onfray:onfray-2012-camus-vontade-de-satisfacao
Table of Contents
Onfray (2012) – Camus, vontade de satisfação
ONFRAY, Michel. L’ordre libertaire: la vie philosophique d’Albert Camus. Paris: Flammarion, 2012.
Um filósofo nietzschiano
- A compreensão da dívida intelectual e existencial de Albert Camus para com Friedrich Nietzsche, explicitada na afirmação de 1954 sobre dever ao filósofo alemão uma parte do que se é, exige o reconhecimento de que a obra camusiana encontra na fidelidade à infância e na leitura nietzschiana suas raízes fundamentais, funcionando o pensamento de Nietzsche como um antídoto à dialética hegeliana e favorecendo A Gaia Ciência em detrimento da Fenomenologia do Espírito.
- A definição de um filósofo nietzschiano não deve ser confundida com a mimese estéril ou a repetição dócil da totalidade dos pensamentos do autor de Zaratustra, o que implicaria contradições absurdas como adorar e detestar Richard Wagner simultaneamente ou subscrever mecanicamente à cosmologia do eterno retorno, mas sim compreender que a verdadeira reverência ao mestre, conforme preconizado no capítulo “Da virtude dadivosa”, consiste em desprender-se dele para traçar a própria rota num universo previamente cartografado pela sua filosofia.
Pensar a partir de Nietzsche
- A condição de nietzschiano reside na capacidade de raciocinar não como Nietzsche, mas a partir dele, utilizando seus diagnósticos rigorosos sobre o niilismo europeu, a superação do ideal ascético judaico-cristão e a destruição da metafísica ocidental em prol de uma física da vontade de potência, para edificar uma ontologia radicalmente imanente que valoriza a filosofia pré-socrática e a luz mediterrânea contra as brumas nórdicas e as paixões tristes do socialismo.
- A identificação de Albert Camus com o estilo existencial e de pensamento nietzschiano manifesta-se na profusão de referências nos seus cadernos, abrangendo temas como a dor, a vida filosófica, o amor fati e a figura do filósofo artista, configurando um autoportrato fragmentado que eleva Camus à categoria de um dos maiores filósofos nietzschianos do século XX, distinguindo-se das leituras puramente acadêmicas, desconstrucionistas ou politizadas de figuras como Martin Heidegger, Gilles Deleuze ou Jacques Derrida, ao tomar Nietzsche como um convite prático à vida filosófica e à coerência entre concepção e vivência.
Uma longa história de amor
- A relação intelectual entre o pensador de Argel e o de Rocken iniciou-se precocemente, evidenciada pelo ensaio de juventude de 1932 sobre Nietzsche e a música, no qual o jovem estudante, sob a tutela de Jean Grenier e influenciado por O Mundo como Vontade e Representação de Arthur Schopenhauer e O Nascimento da Tragédia, defende uma concepção da arte e da música não como realistas, mas como consoladoras e capazes de transportar o indivíduo para um universo onírico de fuga da necessidade, uma tese que amalgama influências schopenhauerianas e nietzschianas com a estética neoplatônica de Plotino sobre o Belo.
- A interpretação camusiana rejeita as leituras moralizadoras que confundem a ontologia trágica da vontade de potência com o egoísmo vulgar, defendendo que o pessimismo nietzschiano é uma forma de olhar o real sem filtros, nem otimistas nem pessimistas, mas trágicos, convidando ao amor à realidade tal como ela se apresenta, o que ressoa com a experiência pessoal de Camus, que encontrava na arte uma evasão necessária da sua condição de pobreza e orfandade.
O nietzschianismo, efeitos secundários
- A recepção inicial da filosofia nietzschiana na juventude pode manifestar-se através de um dandismo superficial e de uma vanidade defensiva, como observado no comportamento do jovem Camus e nas suas cartas a Fréminville, onde a exortação à maldade e ao orgulho reflete menos uma compreensão profunda da inocência do devir do que um sintoma de um sofrimento interior e de uma inabilidade em lidar com as paixões tristes, exacerbadas pelo casamento tumultuado com Simone Hie.
- A assimilação da complexidade ontológica de Nietzsche requer uma maturação que transcende a leitura adolescente, pois o “filosofar com o martelo” exige uma aprendizagem prévia do instrumento, sendo o dandismo e as interpretações equivocadas sobre o imoralismo etapas transitórias na formação do aprendiz que busca compreender o amor ao destino e a aceitação do mundo sem as categorias morais cristãs.
O companheirismo com Nietzsche
- A presença de Nietzsche na vida de Camus estendeu-se até o momento derradeiro, simbolizada pela presença de um exemplar de A Gaia Ciência na pasta encontrada nos destroços do acidente fatal em 1960, demonstrando que o diálogo com o filósofo alemão, iniciado na juventude, permeou toda a sua produção intelectual, desde as crônicas de Actuelles até à consagração do Nobel, mantendo-se como uma referência constante de mestria e reflexão.
Nietzsche, um homem revoltado
- A análise da revolta metafísica em O Homem Revoltado dedica um capítulo a Nietzsche, situando-o entre Max Stirner e Fiodor Dostoievski, e empenha-se em dissociar o pensamento nietzschiano da barbárie nacional-socialista, argumentando que o super-homem é uma figura de sabedoria trágica e antipolítica, radicalmente oposta ao racismo e à brutalidade cínica do nazismo, embora reconheça uma responsabilidade involuntária do filósofo na ausência de barreiras explícitas contra tais apropriações indevidas.
- A crítica camusiana denuncia a manipulação da obra A Vontade de Potência pela irmã do filósofo, Elisabeth Forster-Nietzsche, e reafirma que a verdadeira essência do pensamento de Nietzsche reside no diagnóstico do niilismo e na proposta de viver sem deuses, superando tanto o cristianismo, entendido como um niilismo que calunia o mundo, quanto o socialismo, visto como uma variação secular da escatologia cristã.
Um impasse ontológico
- A proposição nietzschiana de consentimento total à inocência do devir e a afirmação incondicional de tudo o que existe, incluindo o mal e o sofrimento, conduz a um impasse ontológico onde a revolta se torna impossível, pois negar qualquer aspecto da realidade seria negar a divindade do mundo no eterno retorno, uma lógica que, levada ao extremo, poderia legitimar o indefensável, como os horrores concentracionários.
- Diante da constatação de que a aceitação total preconizada por Nietzsche poderia justificar o assassinato e a tirania da história divinizada pelo marxismo, Camus elabora um nietzschianismo de esquerda ou libertário, que conserva o amor fati apenas para o que aumenta a vida, introduzindo a revolta e o “não” contra tudo aquilo que promove a morte e a diminuição do ser, rompendo assim com a aprovação indiscriminada da fatalidade.
Os grandes fogos de Gênova
- A afinidade entre Camus e Nietzsche aprofunda-se na partilha da fragilidade física e psicológica, na experiência da dor e da solidão, e na necessidade de superar o sofrimento através de rituais de purificação, evocando a imagem dos grandes fogos acesos por Nietzsche nas colinas de Gênova para queimar o passado e as dores amorosas, uma metáfora que Camus adota para reduzir a cinzas as injustiças e as calúnias sofridas por parte da intelligentsia parisiense após a publicação de O Homem Revoltado.
Sofrer é amadurecer
- A experiência corporal da doença, seja a sífilis de Nietzsche ou a tuberculose de Camus, constitui uma via de acesso a um conhecimento ontológico inacessível aos sãos, onde o sofrimento não é interpretado à luz da culpa judaico-cristã, mas como uma oportunidade de fortalecimento do caráter e de elevação espiritual, confirmando a tese de Zaratustra de que tudo o que sofre quer viver para amadurecer e tornar-se jubiloso.
- O hedonismo ontológico proposto como resposta à finitude e à dor estabelece uma correlação intrínseca entre sofrimento e alegria, onde a consciência da morte iminente intensifica o desejo de vida e a vontade de amar o destino, transformando a enfermidade numa ocasião de força e numa ferramenta de criação filosófica existencial.
O absurdo avesso e o direito hedonista
- A tuberculose, diagnosticada na juventude, impôs a Camus uma visão trágica da existência que fundamenta a teoria do absurdo n'O Mito de Sísifo, levando-o a rejeitar a imortalidade em favor do esgotamento do campo do possível e a privilegiar a companhia de figuras que consomem a vida, como o artista e o conquistador, em detrimento dos racionalistas profissionais, estabelecendo uma ligação indissolúvel entre a descoberta do absurdo e a elaboração de uma filosofia da felicidade natural.
- A filosofia de Camus, alinhada com a premissa nietzschiana de que um sistema válido é inseparável do seu autor, emerge da visceralidade da experiência pessoal e da lucidez estéril diante da morte, rejeitando consolations sobrenaturais para afirmar uma estética do Absurdo que busca a cura e a consolação na própria imanência e na exaltação da vida ameaçada.
A renúncia e a afirmação
- As limitações impostas pela doença forçaram Camus a renunciar a carreiras tradicionais e ao desporto, desviando-o do percurso acadêmico da Escola Normal Superior e preservando o seu pensamento da formatação institucional, permitindo-lhe desenvolver uma reflexão enraizada na experiência concreta da pobreza e da dor, longe da abstração conceptual hegemônica.
Técnica de si estoica
- A leitura de Epicteto e do estoicismo imperial durante a convalescença forneceu a Camus uma técnica de si baseada na distinção entre o que depende e o que não depende do indivíduo, ensinando-o a trabalhar sobre a representação da dor e a aceitar a necessidade do destino, uma sabedoria prática que Nietzsche também incorporou na figura do super-homem e que permitiu ao jovem Camus transformar a vontade de cura numa afirmação de vida.
Morrer feliz
- No romance póstumo A Morte Feliz, Camus explora a temática da morte consciente e voluntária através do protagonista Mersault, refletindo a convicção de que a doença altera a percepção sensorial do mundo e que a superação do medo da morte é condição essencial para a posse plena da vida, estabelecendo uma dialética entre o corpo doente e a vontade de alegria que culmina na possibilidade de um fim reconciliado com a existência.
O filósofo artista
- A figura do filósofo artista, central em Nietzsche e encarnada por Camus, opõe-se ao filósofo universitário ao rejeitar a objetividade científica em favor de uma subjetividade criadora que une vida e obra, utilizando a arte não como um fim em si mesmo, mas como meio de invenção de novas possibilidades de existência e de expressão de uma filosofia existencial que privilegia a música, a tragédia e a afirmação dionisíaca sobre a lógica apolínea.
"A arte de viver em tempos de catástrofe"
- O engajamento do filósofo artista distingue-se tanto da arte pela arte quanto do realismo socialista, recusando servir ideologias que sacrificam o real em nome de um futuro radioso e optando por uma arte política que se coloca ao serviço dos que sofrem a história, diagnosticando o niilismo e propondo um estilo de vida que resiste às forças da morte e celebra a vida positiva, assumindo a tarefa de falar por aqueles que foram silenciados pela opressão.
Como ser fiel à sua infância?
- Em O Avesso e o Direito, Camus estabelece a fidelidade à sua origem pobre e argelina como o fundamento da sua obra, utilizando a fenomenologia da pobreza para extrair valores como a dignidade, o silêncio e a fraternidade, e demonstrando que a verdadeira fidelidade ao meio de origem se realiza através da transformação da experiência vivida em arte e na defesa de um hedonismo libertário que recusa o ressentimento e a inveja.
A filosofia como autobiografia
- A obra camusiana confirma a tese nietzschiana de que toda a filosofia é uma confissão disfarçada do seu autor, enraizada na fisiologia e na biografia, e embora Camus tenha tentado negar essa conexão para proteger o seu pensamento de ataques ad hominem, a indissociabilidade entre a sua vida de órfão pobre e a sua filosofia solar torna a sua personalidade irrefutável, mesmo que os seus sistemas teóricos pudessem ser contestados.
Praga ou Vicenza
- A oposição entre a experiência de desespero e morte na alma vivida em Praga e a redenção luminosa e dionisíaca experimentada em Vicenza estrutura a geografia espiritual de Camus, confrontando o niilismo e a escuridão da Europa central com a cura e a ressurreição do espírito proporcionadas pela luz, pela natureza e pela estética mediterrânea, reafirmando a primazia do corpo e da sensação na constituição da sabedoria.
A meia distância da pobreza e do sol
- A conjunção entre pobreza e luz solar na infância de Camus impediu que a privação material se transformasse em miséria espiritual, ensinando-lhe o despojamento e o orgulho natural, em contraste com a verdadeira injustiça da pobreza vivida sob céus cinzentos e industriais; essa “pobreza metafísica” fundamenta uma sabedoria que despreza a posse e a ambição mundana em favor da posse de si mesmo e da fruição simples da existência.
Bodas em Tipasa
- Bodas em Tipasa constitui uma obra-prima de filosofia dionisíaca que rompe com a tradição acadêmica apolínea ao propor uma escrita sensorial, lírica e imediata, onde a verdade não é deduzida racionalmente, mas experimentada corporalmente através da fusão com a natureza, o sol e o mar, funcionando Tipasa como um personagem conceitual que encarna um ponto de vista afirmativo e solar sobre o mundo.
Viver segundo Bodas
- A lição existencial de Bodas reside na prática de uma fenomenologia do corpo que recusa a culpa cristã e o ideal ascético, celebrando a união física com os elementos naturais como uma forma de sagrado imanente e reivindicando o direito à felicidade e ao prazer sem vergonha, numa postura pagã que vê na natureza a única divindade e no presente a única eternidade possível.
A criação contra a civilização
- A distinção entre povos civilizados e povos criadores, exemplificada pela Argélia, valoriza a vida no presente, a ausência de mitos consoladores e a aceitação da finitude sem a mediação de uma cultura que amortece o impacto da realidade, propondo uma inteligência bárbara e dionisíaca que se opõe ao niilismo cansado da Europa e define o pecado como a traição da vida presente em nome de uma esperança futura ilusória.
Retornar a Tipasa
- O retorno a Tipasa na maturidade, após as polêmicas de O Homem Revoltado, simboliza a redescoberta da “verão invencível” no coração do inverno pessoal e histórico, reafirmando a eficácia terapêutica da natureza e da luz mediterrânea contra o desespero e o niilismo europeu, e consolidando a “pensamento de midi” como uma política de medida, beleza e força de caráter capaz de resistir à desmesura e à feiura da época.
/home/mccastro/public_html/sofia/data/pages/onfray/onfray-2012-camus-vontade-de-satisfacao.txt · Last modified: by 127.0.0.1
