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Michel Henry (Marx) – a crítica da essência política, o manuscrito de 1842

Henry, Michel. Marx. vol. I. Una filosofía de la realidad. - 1a ed. - Buenos Aires : Ediciones La Cebra, 2011.

A elucidação sistemática da Crítica da filosofia do Direito de Hegel, redigida entre 1842 e 1843, constitui não apenas uma fase inicial da reflexão do jovem Marx, mas a emergência de intuições decisivas que comandarão toda a obra futura, estabelecendo-a desde o princípio como uma filosofia da realidade através de um comentário minucioso dos parágrafos 261 a 313 dos Princípios da filosofia do direito; neste confronto, Marx identifica o pressuposto hegeliano segundo o qual o Estado não se superpõe à sociedade civil e à família como um agregado externo, mas constitui a sua realidade imanente e o seu fim, tese que Marx adota para, num movimento dialético, abalar o edifício hegeliano ao questionar como o Estado pode ser apresentado como uma necessidade exterior se ele é, de fato, a realidade interior dessas esferas, expondo assim a incapacidade de Georg Wilhelm Friedrich Hegel em estabelecer a identidade entre o particular e o universal que ele mesmo afirma.

A análise do parágrafo 262 revela a inversão mistificadora operada por Hegel, na qual a Ideia real, ao cindir-se nas esferas da família e da sociedade civil para sair de sua idealidade, atribui a estas uma existência finita e dependente, convertendo os sujeitos reais em momentos objetivos da Ideia e fazendo com que a realidade da sociedade civil apareça não como ela mesma, mas como uma outra realidade movida por um espírito estranho; auxiliado pela leitura de A essência do cristianismo, Marx recorre a Ludwig Feuerbach e, via este, a Jacob Boehme e Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling, para identificar na filosofia hegeliana o fundo panteísta onde a natureza e a sociedade civil figuram como o sombrio fundo natural onde se acende a luz do Estado, denunciando que a mediação operada pela Ideia é apenas aparente, pois deixa os indivíduos reais tal como são, conferindo-lhes apenas uma significação externa de determinação lógica.

A crítica radical da subsunção constitui o cerne metodológico do manuscrito de 1843, rejeitando a pretensão de que a realidade seja explicada quando exposta à luz da Ideia, visto que tal exposição é arbitrária e incapaz de compreender o ser específico das determinações políticas ou sociais, transformando a racionalidade ekstática de Hegel no horizonte da contingência onde qualquer conteúdo empírico — como o Estado prussiano — pode ser legitimado; contra essa lógica, Marx descobre o conceito de uma razão que reside no próprio real, identificando-a com a atividade concreta dos indivíduos, com a necessidade e com a vida, as quais fundam e produzem as formações sociais, invertendo a tese hegeliana ao postular que a explicação verdadeira não é uma teoria ou consideração externa, mas a própria produção ontológica daquilo que é explicado.

A desconstrução da teoria do Estado monárquico e do parágrafo 279 demonstra a impossibilidade ontológica de deduzir a existência de um indivíduo específico — o monarca — a partir do autodesenvolvimento da vontade universal, pois a subjetividade, embora possua uma estrutura monádica, só existe na pluralidade dos indivíduos reais e nunca em um único indivíduo predestinado pela Ideia; ao afirmar que a personalidade do Estado só é real como uma pessoa (o monarca), Hegel nega a personalidade moral da sociedade e da família, privando-as de existência real para concentrá-la no topo do Estado, uma manobra que Marx denuncia como mística e contraditória, contrapondo-lhe a tese de que, se a personalidade é o predicado do sujeito, e se o sujeito é o indivíduo, então a soberania deve residir necessariamente em muitos indivíduos, o que fundamenta metafisicamente a democracia.

A democracia é apresentada não como uma forma política entre outras, mas como o enigma resolvido de todas as constituições e a constituição genérica, onde a lei existe para o homem e não o homem para a lei, operando uma inversão total onde o Estado deixa de ser o sujeito que subjetiva a si mesmo misticamente para tornar-se o homem objetivado; essa concepção implica que a substancialidade política não é uma realidade autossuficiente (Selbständigkeit), mas que depende inteiramente da subjetividade concreta dos indivíduos que a produzem, revelando que o Deus de Hegel necessita dos homens e que a objetividade ideal, longe de ser o princípio, é reconduzida à sua gênese na vida real do povo.

A elucidação da forma do “assunto geral” expõe a estrutura da subjetividade ekstática em Hegel, onde o interesse universal, hipostasiado como uma essência objetiva, necessita dos sujeitos apenas para sua existência formal, resultando numa cisão onde a forma do assunto geral se separa de seu conteúdo real — o assunto de todos — para tornar-se o monopólio privado de burocratas e governantes; essa separação entre forma e conteúdo não é acidental, mas enraíza-se na própria abstração que constitui a subjetividade moderna como forma vazia e exterioridade, uma abstração que Marx, antecipando a unidade dialética entre idealismo e materialismo, denuncia como misticismo abstrato, onde o espiritualismo abstrato se revela idêntico ao materialismo abstrato, ambos incapazes de apreender a existência original que não se separa de si mesma.

A crítica das mediações — os estados ou estamentos (Stande) e a burocracia — revela que o sistema hegeliano, longe de resolver a contradição entre a sociedade civil e o Estado, a pressupõe e institucionaliza, pois os estados, ao tentarem transformar o interesse privado das corporações em interesse universal, exigem uma transubstanciação impossível onde a sociedade civil deve negar a sua própria essência para participar do político; a burocracia, apresentada como a segunda mediação e a consciência do Estado, revela-se igualmente uma estrutura de separação baseada no formalismo do exame, que opera a transmutação do saber profano em saber sagrado, criando uma casta que possui o Estado como sua propriedade privada e que, paradoxalmente, necessita ser protegida de si mesma pelas corporações, num jogo circular de garantias que apenas atesta a ruptura ontológica entre a vida real e a esfera política.

A análise do morgadio ou morgado (majorat) introduz a determinação do econômico na problemática marxiana, ainda que de forma inicialmente ingênua e negativa, ao mostrar que, na instituição da primogenitura, não é o Estado que determina a propriedade, como queria Hegel, mas a propriedade da terra, petrificada e inalienável, que determina a constituição política, fazendo da vontade do Estado um predicado da propriedade privada; neste ponto, Marx utiliza o esquema de Jacob Boehme para descrever a relação entre o político (luz, espírito) e o econômico (terra, matéria), denunciando que, no morgadio, a propriedade privada se torna a religião do Estado, a brutalidade do fato nu que submete a vontade racional à impenetrabilidade do elemento natural, invertendo a pretensão do idealismo político de dominar a natureza.

A mutação decisiva do conceito de alienação ocorre sob a influência de Feuerbach, deslocando o sentido hegeliano e boehmiano de alienação como realização e manifestação do espírito na objetividade para o sentido de privação e perda, o que leva Marx a conceber a natureza e a propriedade privada não mais como a base necessária para a realização do espírito, mas como a negação radical da razão política e como a barbárie que impede a efetivação do universal; essa perspectiva conduz a uma crítica do naturalismo onde a definição do indivíduo pela corporeidade e pelo nascimento físico — como no caso dos legisladores natos ou do monarca — é vista como uma regressão à zoologia, onde as mais altas funções do Estado coincidem com a natureza animal e não com a espécie consciente de si.

A tentativa de resolver a separação entre o indivíduo e o Estado leva Marx a um hiperhegelianismo paradoxal, onde, para evitar a abstração de uma cidadania separada da vida burguesa, ele postula que a essência política deve impregnar materialmente todas as esferas da sociedade civil, abolindo a distinção entre a vida privada e a vida pública; recorrendo ao conceito feuerbachiano de gênero (Gattung) e à ideia de que os indivíduos devem participar dos assuntos do Estado “enquanto todos” (não como uma coleção, mas como seres cuja essência é o universal), Marx substitui a mediação institucional pela identidade imediata entre a existência individual e a essência genérica, o que resulta numa exigência totalitária onde toda necessidade social, até a mais trivial, deve ser elevada à dignidade política, e onde a sociedade civil deve encontrar sua unidade numa representação ideal que, no entanto, permanece impotente para fundar a realidade concreta das atividades individuais.

O recurso à antropologia de Feuerbach no manuscrito de 1843, com a noção de que o ser do homem é uma riqueza infinita de predicados realizados na multiplicidade dos indivíduos, revela-se uma tentativa falha de fundamentar a unidade do social, pois o gênero, sendo uma abstração ideal, não pode gerar a existência real nem garantir a harmonia das atividades egoístas da sociedade civil; assim, a crítica de Marx termina num impasse onde, ao rejeitar a mediação hegeliana em nome de uma imanência radical, ele é forçado a hipostasiar o social como a verdadeira essência política do indivíduo, preparando o terreno para a inversão futura, mas permanecendo ainda prisioneiro da teleologia do universal que buscava desconstruir.

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