Irigaray2016
A interiorização (recueillement ]) do espírito no eu ainda não ocorreu, pois o homem não avançou além de uma intuição pura e simples – ou seja, a de que ele representa a humanidade. O homem não se elevou de seu ser-aí imediato para se considerar como metade da humanidade. Ele imaginou que o devir espiritual pudesse ser realizado com base em um, e não em dois, mesmo genealogicamente. Nessa perspectiva, podemos até caminhar para um, mas não viemos de um: somos gerados por dois, e o Homem enquanto homem nasce de outro. Desde seu nascimento, ele está assim em relação com outro, com um gênero diferente. Mas nas mitologias patriarcais, o devir a partir de um foi inscrito como origem, enquanto os dois continuam a prosperar socialmente nas culturas femininas.
Por não ter superado sua imediatez natural intuitiva – “eu represento a humanidade” –, o homem não começou a pensar. Ele vive em uma pseudonatureza, entre realidade e espiritualidade; estas foram desconectadas uma da outra por uma época cultural (a nossa) em que a filosofia, como diria Hegel, ainda está em estado de sonambulismo, não de despertar. O homem não se elevou acima de um estado de unidade imediata com a natureza, então sonha ser o todo. Sonha que ele sozinho é a natureza e que cabe a ele empreender a tarefa espiritual de se diferenciar de (sua) natureza e de si mesmo.
Esse processo leva tempo, escreve Hegel. Por isso, a história da filosofia teve que se desenrolar por séculos em uma espécie de sonambulismo para perceber seu fim ou objetivo, sua completude ou limite, seu horizonte. Resta-nos ir além da origem para aprender a nos interiorizar e pensar. Pois pensar com base no homem como um ainda não é pensar. E o trabalho do negativo assim colocado em ação, em operação, não é um negativo real, mesmo que seja mortificação.
Dessa perspectiva, é estranho que o filósofo, como o homem devoto, tenha imaginado por séculos que pensar ou rezar devam ser sacrifícios. Também é significativo que em nossas culturas o homem pense ou reze alienando-se de seu corpo, e que pensar ou rezar não o ajudem a se encarnar, a se tornar carne. No entanto, se pensar significa tomar consciência de sua imediatez natural, isso não significa que ela deva ser sacrificada. Pelo contrário, o sacrifício é sinal de falta de contemplação (recueillement) e pensamento. É apenas um ato bastante cego (acting out, diria o psicanalista), fala ou gesto dirigido a um destinatário frequentemente ausente ou abstrato, uma pressuposição na entrada do mundo da consciência. Mas isso é um erro. Tomemos um exemplo: precisamos derrubar uma árvore antes de cultivá-la? Se assim fosse, o que cultivaríamos? Uma ideia da árvore, não a árvore em si.
Há semelhanças entre nossa filosofia e esse erro. O homem não é, de fato, absolutamente livre. Isso não significa que ele seja escravo de uma natureza que deva superar. Também não significa que seja um escravo. Ele é limitado. Sua completude natural está em dois humanos. O homem conhece apenas uma parte da natureza humana, mas esse limite é a condição do devir e da criação.
Portanto, o homem não precisa considerar sua natureza um fardo, nem inventar uma segunda natureza humana (abstrata e irreal) para si mesmo, muito menos neutralizar a diferença entre homem e mulher em nome de uma igualdade factícia. Ele deveria antes entender que representa apenas metade da humanidade, mas é essa condição que lhe permite postular o infinito sem um trabalho antinatural do negativo. O fato de ser metade permite que o todo seja construído sem negar o que é. Tomando o todo como ponto de partida, o devir é forçado a negar o todo para se desenvolver. Hegel, como a maioria, esquece que a imediatez natural não é, em certo sentido, absoluta nem simples imediatez. Na própria natureza, a natureza encontra seu limite. Esse limite está de fato na geração, mas também, horizontalmente, na diferença entre feminino e masculino. Além disso, essas duas dimensões se unem.
É um erro, portanto, reivindicar ser livre e soberano sobre a natureza. Como sou apenas metade do mundo, não sou livre da forma como isso é geralmente concebido. Sou livre, por outro lado, e como deveria ser, para ser o que ou quem sou: metade da humanidade. Nesse sentido, e apenas nesse sentido, o direito – meu direito – é função do respeito pela vida.