====== Alma do Mundo na Antiguidade Grega (Vieillard-Baron) ====== Jean-Louis Vieillard-Baron (USJJ6) A Alma do Mundo aparece com mais frequência do que parece nas obras da filosofia grega, pois possui vários avatares – especialmente o éter, o Demiurgo, mas também, e talvez principalmente, Eros (o primeiro e mais antigo dos deuses) e Hélio, o Sol. Isso mostra que, para a tradição platônica, a Alma do Mundo é uma imagem diurna, em oposição a uma alma noturna, simbolizada pela Terra-Mãe-Matéria. A Antiguidade grega conheceu uma interpretação materialista e noturna da Alma do Mundo, a dos estoicos, que a identificavam com o //pneuma// universal, o sopro imanente ao cosmos, a razão seminal do Universo. Na tradição platônica, porém, mesmo sendo uma imagem diurna, a Alma do Mundo não deixa de cumprir um papel mediador entre o puramente inteligível e o puramente sensível. ==== **A Alma do Mundo em Filolau e Platão** ==== Sob a forma inesperada de uma barca, a Alma do Mundo aparece pela primeira vez no **Fragmento 44** do pitagórico **Filolau**: //"Os quatro elementos estão na esfera como mercadorias no porão de um navio; o quinto elemento carrega os outros, assim como o navio transporta as mercadorias."// Isso nos revela, de maneira simples, o primeiro traço essencial da Alma do Mundo: longe de ser imanente ao mundo, ela **envolve os quatro elementos** que o compõem. Ela não está escondida dentro do mundo, mas é essa **matéria espiritual que o circunda**. Para **Platão** (//Timeu// 34C-37C), a existência da Alma do Mundo é evidente porque o universo é capaz de se mover por si mesmo, sem receber movimento de outro lugar – algo que só pertence à alma. Além disso, do ponto de vista teórico, ela justifica a harmonia que observamos e compreendemos no cosmos. Por fim, ligada aos caminhos celestes percorridos pelos astros, ela se apoia na intuição do **diafano como elemento sagrado**. É o deslumbramento diante da pureza do céu da Ática na primavera que permite à inteligência humana "ver", além do corpo visível do céu, sua **alma translúcida e invisível**. Transcendente ao mundo, essa alma é: * **Princípio de harmonia** (tanto musical quanto metafísica); * **Princípio de ordem e regularidade** dos movimentos celestes. ==== **Eros como Avatar da Alma do Mundo** ==== Sendo princípio da beleza do cosmos, a Alma do Mundo está naturalmente ligada ao **amor que se volta para o belo**. Subjetivamente, ela só pode ser reconhecida pelos discípulos de Eros, como diz **Plotino**: //"Aqueles que reconhecem no sensível a imagem (mimema) de um ser situado no inteligível são profundamente perturbados e avançam em direção à reminiscência do verdadeiro. Tal é o sentimento que comove os que amam."// Essa é a autêntica doutrina do **Fedro** de Platão, que faz de Eros o deus da reminiscência, cuja alma é comovida pelo espetáculo da beleza visível. Mas Plotino ressalta que essa emoção amorosa não é acessível a todos: é preciso um olhar dotado de **respeito religioso** pela beleza terrestre. Objetivamente, a **genealogia de Eros** explica por que ele pode ser um avatar da Alma do Mundo. No tratado **"Erótico"** (século I d.C.), **Plutarco** contrasta duas genealogias: * **A de Parmênides**: Afrodite reina sobre os acoplamentos e gera Eros, "o primeiro nascido dos deuses". * **A de Hesíodo** (//Teogonia//): Eros surge **antes de Afrodite**, sendo "o mais belo dos deuses imortais". Para Plutarco, a genealogia de Hesíodo é a melhor, pois explica os três traços principais de Eros: * Ele é **rei** (//Basileus//); * Ele é **princípio** (//archôn//); * Ele é **fundador da harmonia** (//harmostès//). Plutarco não menciona, porém, a genealogia platônica do **Banquete** (203B), onde Eros é filho de **Poros** (recurso, riqueza) e **Penia** (pobreza) – um //daimon// mediador entre o sensível e o inteligível. Essa genealogia revela a natureza contraditória de Eros: * **Penia** representa a indeterminação (equivalente ao //Chaos// primordial); * **Poros** herda de **Métis** (sabedoria prática) a habilidade de buscar as riquezas (as Ideias). Assim, Eros é a **Alma do Mundo sob a forma de uma criança**, o primeiro dos deuses. ==== **As Funções de Eros** ==== Plutarco descreve Eros como: * **O guia que conduz os iniciados nos mistérios**; * Aquele que transforma as Ideias em **formas, cores e figuras**, revestidas do brilho da juventude. Seu efeito é comparável ao do **arco-íris**, que reflete a luz solar através das nuvens. Da mesma forma, a beleza sensível remete à beleza divina. Eros converte a **aparência em teofania**, sendo, como diz Plotino, //"visão com imagem"// (//met’ eidôlou horasis//) – o lugar onde se unem o objeto inteligível da contemplação e o olhar que o contempla. Esse **espaço visionário** foi explorado por **Sohravardi** e os platônicos persas como o **mundo imaginal** (Henry Corbin). Plutarco ainda ressalta que, segundo os egípcios, Eros tem **três formas**: * **Vulgar**; * **Celeste**; * **Solar** (pois Hélio e Eros têm grande semelhança). O Sol, no mundo visível, cumpre o mesmo papel que Eros no coração humano: **ilumina, nutre e faz crescer**. ==== **Hélio-Rei em Juliano, o Imperador** ==== Nos discursos **"Sobre a Mãe dos Deuses"** e **"Sobre Hélio-Rei"** (século IV d.C.), o imperador **Juliano** unifica a piedade antiga em sua última grande expressão. Influenciado pelo platonismo, pelo aristotelismo (a //quinta essentia//, o éter) e pelo culto de Mitra, ele apresenta Hélio como: * **Rei entre os deuses inteligíveis**; * **Mediador** entre o sensível e o transcendente; * **Demiurgo**, cuja luz é a "flor incorpórea dos corpos", energia pura do intelecto. Juliano destaca o **poder unificador de Hélio**, análogo à //henosis// (unificação) de **Proclo**. Como a Alma do Mundo, o Sol: * **Distinguie as formas**; * **Reúne a matéria**; * **Funde monoteísmo e politeísmo**, pois, embora subordinado ao **Uno** (Deus transcendente), Hélio é **multiplicidade divina sem alteração da essência**. ==== **Proclo e a Alma como Harmonia** ==== Em **Proclo**, a Alma do Mundo é: * **Hipercósmica** (como Demiurgo); * **Encósmica** (como força vital). Ele resolve uma aparente contradição em Platão: * No **Fédon** (92A), Platão rejeita a ideia da alma como **harmonia do corpo** (pois ela pereceria com ele); * No **Timeu**, porém, a alma **é** harmonia. Proclo explica: //"Uma coisa é ser harmonia de si e de outras coisas; outra, ser harmonia apenas de outra coisa."// A alma não é **harmonia dos corpos**, mas **harmonia em si mesma**, pertencendo aos três gêneros do **Ser**, do **Mesmo** e do **Outro**. ==== **Conclusão** ==== Na tradição platônica, a Alma do Mundo se manifesta como: * **Harmonia** (fonte de ordem cósmica); * **Luz** (encarnada em Hélio, o Sol-Rei); * **Vínculo** (//Desmos//), simbolizado por Eros, o deus primordial. Ela **não é o Uno**, mas recebe dele o poder de agir, sendo **multiplicidade essencial** que mantém o cosmos unido. Assim, preserva a **transcendência divina** enquanto assegura a **presença sagrada no mundo**.