====== Oliver Sacks (RC) – rio da consciência ====== “O tempo é a substância de que sou feito”, disse Jorge Luis Borges. “O tempo é um rio que me leva embora, mas eu sou o rio.” Nossos movimentos, nossas ações estendem-se no tempo, assim como as nossas percepções, os pensamentos, os conteúdos da consciência. Vivemos no tempo, organizamos o tempo, somos inteiramente criaturas do tempo. Mas será que o tempo em que vivemos, ou segundo o qual vivemos, é contínuo como o rio de Borges? Ou será mais comparável a uma sucessão de momentos descontínuos, como as contas de um colar? David Hume, no século VIII, defendia a ideia de momentos descontínuos, e para ele a mente nada mais era do que “um pacote ou coleção de percepções distintas, que sucedem umas às outras com uma rapidez inconcebível e estão perpetuamente em fluxo e movimento”. William James escreveu em 1890, nos seus Princípios de psicologia, que a “visão humiana”, como ele a chamava, era ao mesmo tempo eloquente e exasperante. Para começar, ela parecia contrariar a intuição. Em seu famoso capítulo sobre o “fluxo de pensamento”, James observou que a consciência, para seu dono, parece ser sempre contínua, “sem ruptura, brecha ou divisão”, jamais “cortada em pedacinhos”. O conteúdo da consciência pode estar sempre em mudança, porém nós passamos sem solavancos de um pensamento a outro, de um percepto a outro, sem interrupções, sem pausas. Para James, o pensamento fluía, daí sua introdução do termo “fluxo de consciência”. Mas ele se perguntava: “Será que a consciência realmente é descontínua? Será que apenas parece contínua a si mesma, por uma ilusão análoga à do zootrópio?”. Antes de 1830, aproximadamente, não tínhamos como fazer representações ou imagens dotadas de movimento (exceto produzindo um modelo com o funcionamento real). Tampouco ocorreria à maioria das pessoas que uma sensação ou ilusão de movimento pudesse ser transmitida por imagens estáticas. Como é que imagens poderiam denotar movimento sendo imóveis? A própria ideia era paradoxal, uma contradição. Mas o zootrópio provou que era possível combinar imagens individuais no cérebro para obter a ilusão de movimento contínuo. O zootrópio (e muitos outros aparelhos semelhantes, com uma variedade de nomes) era bastante popular na época de James, e dificilmente faltava em um lar de classe média vitoriana. Esses instrumentos possuíam um tambor ou disco no qual eram pintados ou colados desenhos em sequência — “quadros congelados” de animais em movimento, jogos de bola, acrobatas em ação, plantas crescendo. Girava-se o tambor ou disco, e os desenhos separados eram vistos em rápida sucessão; a uma velocidade crítica, de repente isso gerava a percepção de uma imagem única a mover-se constantemente. Embora os zootrópios fossem muito procurados como brinquedos, originalmente foram projetados (em geral, por cientistas ou filósofos) com um propósito muito sério: esclarecer os mecanismos do movimento animal e da própria visão. Se James tivesse escrito alguns anos mais tarde, poderia ter usado a analogia com o cinema. Um filme, com seu fluxo conciso de imagens ligadas tematicamente, sua narrativa visual integrada pelo ponto de vista e valores de seu diretor, é uma boa metáfora para o fluxo de consciência. Os recursos técnicos e conceituais do cinema — zoom, fading, dissolução, omissão, alusão e justaposição de todo tipo — imitam bem e de muitos modos os fluxos e guinadas da consciência. Henri Bergson usou essa analogia em seu livro de 1907, A evolução criadora, no qual toda uma seção trata do “mecanismo cinematográfico do pensamento e a ilusão mecanicista”. Porém, quando Bergson falava em “cinematografia” como um mecanismo elementar do cérebro e da mente, ele se referia a um tipo muito especial de cinematografia, no qual os “instantâneos” não eram isoláveis uns dos outros, e sim ligados organicamente. Em Tempo e livre-arbítrio, ele escreveu que esses momentos de percepção “permeiam-se uns aos outros”, “fundem-se” uns nos outros, como as notas de uma composição musical (em contraste com “as batidas vazias e sucessivas de um metrônomo”). James também escreveu sobre conectividade e articulação, e para ele esses momentos são ligados por toda a trajetória e tema de uma vida: O conhecimento de alguma outra parte do fluxo, passada ou futura, próxima ou remota, sempre se mistura ao nosso conhecimento do presente. Essas remanescências de velhos objetos, essas chegadas de novos, são os germes da memória e da expectativa, o senso retrospectivo e prospectivo de tempo. Fornecem à consciência aquela continuidade sem a qual ela não poderia ser chamada de fluxo. No mesmo capítulo, sobre a percepção do tempo, James cita uma fascinante conjectura de James Mill (o pai de John Stuart Mill), sobre como poderia ser a consciência se ela fosse descontínua, um colar de contas de sensações e imagens separadas: “Nunca poderíamos ter conhecimento algum exceto o do instante presente. Cada uma das nossas sensações, no momento em que cessasse, desapareceria para sempre, e nós seríamos como se nunca tivéssemos sido. Seríamos absolutamente incapazes de adquirir experiência”. James se pergunta se a existência poderia realmente ser possível nessas circunstâncias, com a consciência reduzida a um “lampejo de vagalume tudo além dele na escuridão total”. Essa é exatamente a condição de uma pessoa com amnésia, embora neste caso o “momento” possa ser medido em apenas alguns segundos. Quando descrevi meu paciente amnésico Jimmie, o “Marinheiro Perdido” de O homem que confundiu sua mulher com um chapéu, escrevi: “Ele está isolado em um único momento da existência, rodeado por um fosso ou lacuna de esquecimento. É um homem sem um passado (ou futuro), encalhado em um momento sem significado que muda constantemente”.