====== Merleau-Ponty (FP) – meu corpo ====== (MPFP) Eu não sou o resultado ou o entrecruzamento de múltiplas causalidades que determinam **meu corpo** ou meu “psiquismo”, eu não posso pensar-me como uma parte do mundo, como o simples objeto da biologia, da psicologia e da sociologia, nem fechar sobre mim o universo da ciência. Prefácio Devo até mesmo afastar de mim o **meu corpo**, entendido como uma coisa entre as coisas, como uma soma de processos físico-químicos. Prefácio Seja o ato de atenção pelo qual eu preciso a localização de um ponto de **meu corpo** que é tocado. Intro III A posição precisa do ponto tocado será o invariante dos diversos sentimentos que dele tenho segundo a orientação de meus membros e de **meu corpo**, o ato de atenção pode fixar e objetivar esse invariante porque ele tomou distância em relação às mudanças da aparência. Intro III Mas o intelectualismo delimita o sentir pela ação, no **meu corpo**, de um estímulo real. Intro III É um fato que primeiramente eu me creio circundado por **meu corpo**, preso ao mundo, situado aqui e agora. Intro III Mas cada uma dessas palavras, quando reflito nelas, é desprovida de sentido e não coloca então nenhum problema: eu me perceberia “circundado por **meu corpo**” se eu não estivesse nele tanto quanto em mim, se eu mesmo não pensasse essa relação espacial e assim escapasse à inerência no próprio momento em que eu ma represento? Eu saberia que estou preso no mundo e nele situado se ali estivesse verdadeiramente preso e situado? Eu me limitaria agora a estar onde estou como uma coisa, e, se sei onde estou e me vejo no meio das coisas, é porque sou uma consciência, um ser singular que não reside em parte alguma e pode tornar-se presente a todas as partes em intenção. Intro III Na realidade, a imagem de um mundo constituído em que eu seria, com **meu corpo**, apenas um objeto entre outros e a ideia de uma consciência constituinte absoluta só aparentemente formam antítese: elas exprimem duas vezes o prejuízo de um universo em si perfeitamente explícito. Intro III O corpo vivo assim transformado deixava de ser **meu corpo**, a expressão visível de um Ego concreto, para tornar-se um objeto entre todos os outros. Intro IV Considero **meu corpo**, que é meu ponto de vista sobre o mundo, como um dos objetos desse mundo. Intro IV Da mesma forma, trato minha própria história perceptiva como um resultado de minhas relações com o mundo objetivo; meu presente, que é meu ponto de vista sobre o tempo, torna-se um momento do tempo entre todos os outros, minha duração um reflexo ou um aspecto abstrato do tempo universal, assim como **meu corpo** um modo do espaço objetivo. Intro IV Não me ocupo mais de **meu corpo**, nem do tempo, nem do mundo, tais como os vivo no saber antepredicativo, na comunicação interior que tenho com eles. Intro IV Só falo de **meu corpo** em ideia, do universo em ideia, da ideia de espaço e da ideia de tempo. Intro IV **Meu corpo** não é, exatamente como os corpos exteriores, um objeto que age sobre receptores e finalmente dá lugar à consciência do corpo? Não existe uma “interoceptividade assim como existe uma “exteroceptividade”? Não posso encontrar no corpo filamentos que os órgãos internos enviam ao cérebro e que são instituídos pela natureza para dar à alma a ocasião de sentir seu corpo? A consciência do corpo e a alma são assim repelidos, o corpo volta a ser esta máquina bem limpa que a noção ambígua de comportamento falhou em fazer-nos esquecer. Intro I Mas, no momento mesmo em que o mundo lhe mascara sua deficiência, ele não pode deixar de revelá-la: pois se é verdade que tenho consciência de **meu corpo** através do mundo, que ele é, no centro do mundo, o termo não-percebido para o qual todos os objetos voltam a sua face, é verdade pela mesma razão que **meu corpo** é o pivô do mundo: sei que os objetos têm várias faces porque eu poderia fazer a volta em torno deles, e neste sentido tenho consciência do mundo por meio de **meu corpo**. Intro I Assim, no conjunto de **meu corpo** se delimitam regiões de silêncio. Intro I Correlativamente, é preciso que **meu corpo** seja apreendido não apenas em uma experiência instantânea, singular, plena, mas ainda sob um aspecto de generalidade e como um ser impessoal. Intro I Pode mesmo ocorrer que, no perigo, minha situação humana apague minha situação biológica, que **meu corpo** se lance sem reservas à ação. Intro I Ela dizia, em primeiro lugar, que **meu corpo** se distingue da mesa ou da lâmpada porque ele é percebido constantemente, enquanto posso me afastar daquelas. Intro II Se não tirasse minha roupa, eu nunca perceberia seu avesso, e veremos justamente que minhas roupas podem tornar-se como que anexos de **meu corpo**. Intro II Mas isso não prova que a presença de **meu corpo** seja comparável à permanência de fato de certos objetos, o órgão a um utensílio sempre disponível. Intro II Sua permanência perto de mim, sua perspectiva invariável não são uma necessidade de fato, já que a necessidade de fato as pressupõe: para que minha janela me imponha um ponto de vista sobre a igreja, primeiramente é preciso que **meu corpo** me imponha um sobre o mundo, e a primeira necessidade pode ser simplesmente física só porque a segunda é metafísica, as situações de fato só podem afetar-me se primeiramente sou de tal natureza que existam para mim situações de fato. Intro II Em outros termos, observo os objetos exteriores com **meu corpo**, eu os manejo, os inspeciono, dou a volta em torno deles, mas, quanto ao **meu corpo**, não o observo ele mesmo: para poder fazê-lo, seria preciso dispor de um segundo corpo que não seria ele mesmo observável. Intro II Quando digo que **meu corpo** é sempre percebido por mim, essas palavras não devem então ser entendidas em um sentido simplesmente estatístico e deve haver na apresentação do corpo próprio algo que torne impensável sua ausência ou mesmo sua variação. Intro II No espelho, **meu corpo** não deixa de seguir minhas intenções como sua sombra, e, se a observação consiste em fazer variar o ponto de vista mantendo fixo o objeto, ele não se subtrai à observação e se mostra como um simulacro de **meu corpo** tátil, já que ele imita suas iniciativas em lugar de corresponder a elas por um livre desenrolar de perspectivas. Intro II **Meu corpo** visual é objeto nas partes distanciadas de minha cabeça, mas, à medida que se aproxima dos olhos, ele se separa dos objetos, arranja no meio deles um quase-espaço ao qual eles não têm acesso, e, quando quero preencher este vazio recorrendo à imagem do espelho, ela ainda me remete a um original do corpo que não está ali, entre as coisas, mas do meu lado, aquém de qualquer visão. Intro II Malgrado as aparências, o mesmo acontece com **meu corpo** tátil, pois, se posso apalpar com a mão esquerda a minha mão direita enquanto ela toca um objeto, a mão direita-objeto não é a mão direita que toca: a primeira é um entrelaçamento de ossos, de músculos e de carne largado em um ponto do espaço, a segunda atravessa o espaço como um foguete para ir revelar o objeto exterior no seu lugar. Intro II Embora veja ou toque o mundo, **meu corpo** não pode no entanto ser visto ou tocado. Intro II A presença e a ausência dos objetos exteriores são apenas variações no interior de um campo de presença primordial, de um domínio perceptivo sobre os quais **meu corpo** tem potência. Intro II Não apenas a permanência de **meu corpo** não é um caso particular da permanência no mundo dos objetos exteriores, como ainda a segunda só se compreende pela primeira; não apenas a perspectiva de **meu corpo** não é um caso particular daquela dos objetos, como também a apresentação perspectiva dos objetos só se compreende pela resistência de **meu corpo** a qualquer variação de perspectiva. Intro II Se todavia creio em seus lados escondidos como também em um mundo que os envolve a todos e que coexiste com eles, é enquanto **meu corpo**, sempre presente para mim e entretanto envolvido no meio deles por tantas relações objetivas, os mantém em coexistência com ele e faz bater em todos a pulsação de sua duração. Intro II **Meu corpo**, dizia-se, é reconhecível pelo fato de me dar “sensações duplas”: quando toco minha mão direita com a mão esquerda, o objeto mão direita tem esta singular propriedade de sentir, ele também. Intro II O corpo surpreende-se a si mesmo do exterior prestes a exercer uma função de conhecimento, ele tenta tocar-se tocando, ele esboça “um tipo de reflexão”, e bastaria isso para distingui-lo dos objetos, dos quais posso dizer que “tocam” **meu corpo**, mas apenas quando ele está inerte, e portanto sem que eles o surpreendam em sua função exploradora. Intro II Reconhecia-se então que **meu corpo** não se oferece à maneira dos objetos do sentido externo, e que talvez estes só se perfilem sobre esse fundo afetivo que originariamente lança a consciência para fora de si mesma. Intro II O que eles exprimiam, muito mal a bem da verdade, pela “sensação cinestésica” era a originalidade dos movimentos que executo com **meu corpo**: eles antecipam diretamente a situação final, minha intenção só esboça um percurso especial para ir ao encontro da meta primeiramente dada em seu lugar, há como que um germe de movimento que só secundariamente se desenvolve como percurso objetivo. Intro II As relações entre minha decisão e **meu corpo** no movimento são relações mágicas. Intro II Na aparência da vida, **meu corpo** visual comporta uma grande lacuna no plano da cabeça, mas a biologia estava ali para preencher essa lacuna, para explicá-la pela estrutura dos olhos, para ensinar-me o que na verdade é o corpo, que, assim como os outros homens e como os cadáveres que disseco, tenho uma retina, um cérebro, e que enfim o instrumento do cirurgião infalivelmente poria a nu, nessa região indeterminada de minha cabeça, a réplica exata das ilustrações anatômicas. Intro II Apreendo **meu corpo** como um objeto-sujeito, como capaz de “ver” e de “sofrer”, mas essas representações confusas faziam parte das curiosidades psicológicas, eram amostras de um pensamento mágico do qual a psicologia e a sociologia estudam as leis e que elas fazem regressar, a título de objeto de ciência, ao sistema do mundo verdadeiro. Intro II A incompletude de **meu corpo**, sua apresentação marginal, sua ambiguidade enquanto corpo tocante e corpo tocado não podiam então ser traços de estrutura do próprio corpo; não afetavam sua ideia, tornavam-se os “caracteres distintivos” dos conteúdos de consciência que compõem nossa representação do corpo: esses conteúdos são constantes, afetivos e bizarramente emparelhados em “sensações duplas”, mas, com exceção disso, a representação do corpo é uma representação como as outras e, correlativamente, o corpo é um objeto como os outros. Intro II A incompletude de minha percepção era compreendida como uma incompletude de fato, que resultava da organização de meus aparelhos sensoriais; a presença de **meu corpo**, como uma presença de fato que resultava de sua ação perpétua sobre meus receptores nervosos; enfim, a união entre a alma e o corpo, suposta por essas duas explicações, era compreendida, segundo o pensamento de Descartes, como uma união de fato cuja possibilidade de princípio não precisava ser estabelecida porque o fato, ponto de partida do conhecimento, eliminava-se de seus resultados acabados. Intro II O contorno de **meu corpo** é uma fronteira que as relações de espaço ordinárias não transpõem. Intro III Da mesma maneira, **meu corpo** inteiro não é para mim uma reunião de órgãos justapostos no espaço. Intro III Ele devia fornecer-me a mudança de posição das partes de **meu corpo** para cada movimento de uma delas, a posição de cada estímulo local no conjunto do corpo, o balanço dos movimentos realizados em cada momento de um gesto complexo, e enfim uma tradução perpétua, em linguagem visual, das impressões cinestésicas e articulares do momento. Intro III Não basta dizer que **meu corpo** é uma forma, quer dizer, um fenômeno no qual o todo é anterior às partes. Intro III Reconduzido a um sentido preciso, este termo significa que **meu corpo** me aparece como postura em vista de uma certa tarefa atual ou possível. Intro III Se fico em pé diante de minha escrivaninha e nela me apoio com as duas mãos, apenas minhas mãos estão acentuadas e todo o **meu corpo** vagueia atrás delas como uma cauda de cometa. Intro III Sei onde está meu cachimbo por um saber absoluto, e através disso sei onde está minha mão e onde está **meu corpo**, assim como o primitivo no deserto está a cada instante imediatamente orientado, sem precisar recordar e somar as distâncias percorridas e os ângulos de deslocamento desde o ponto de partida. Intro III A palavra “aqui”, aplicada ao **meu corpo**, não designa uma posição determinada pela relação a outras posições ou pela relação a coordenadas exteriores, mas designa a instalação das primeiras coordenadas, a ancoragem do corpo ativo em um objeto, a situação do corpo em face de suas tarefas. Intro III Em última análise, se **meu corpo** pode ser uma “forma” e se pode haver diante dele figuras privilegiadas sobre fundos indiferentes, é enquanto ele está polarizado por suas tarefas, enquanto existe em direção a elas, enquanto se encolhe sobre si para atingir sua meta, e o “esquema corporal” é finalmente uma maneira de exprimir que **meu corpo** está no mundo. Intro III Quando digo que um objeto está sobre uma mesa, sempre me situo em pensamento na mesa ou no objeto, e aplico a eles uma categoria que em princípio convém à relação entre **meu corpo** e objetos exteriores. Intro III E, finalmente, longe de **meu corpo** ser para mim apenas um fragmento de espaço, para mim não haveria espaço se eu não tivesse corpo. Intro III E é preciso admitir que um ponto de **meu corpo** pode estar presente para mim como ponto a pegar sem me ser dado nessa apreensão antecipada como ponto a mostrar. Intro III Portanto, por meio de **meu corpo** enquanto potência de um certo número de ações familiares, posso instalar-me em meu meio circundante enquanto conjunto de manipulando, sem visar **meu corpo** nem meu meio circundante como objetos no sentido kantiano, quer dizer, como sistemas de qualidades ligadas por uma lei inteligível, como entidades transparentes, livres de qualquer aderência local ou temporal e prontas para a denominação ou, pelo menos, para um gesto de designação. Intro III Há meu braço como suporte desses atos que conheço bem, **meu corpo** como potência de ação determinada da qual conheço antecipadamente o campo ou o alcance, há meu meio circundante como conjunto dos pontos de aplicação possíveis dessa potência — e há, por outro lado, meu braço como máquina de músculos e de ossos, como aparelho para flexões e extensões, como objeto articulado, o mundo como puro espetáculo ao qual eu não me junto, mas que contemplo e que aponto. Intro III Quando faço sinal para um amigo se aproximar, minha intenção não é um pensamento que eu prepararia em mim mesmo, e não percebo o sinal em **meu corpo**. Intro III Se agora executo “o mesmo” movimento, mas sem visar nenhum parceiro presente ou mesmo imaginário e como ‘‘uma sequência de movimentos em si”, quer dizer, se executo uma ‘‘flexão” do antebraço sobre o braço com “supinação” do braço e “flexão” dos dedos, **meu corpo**, que havia pouco era o veículo do movimento, torna-se sua meta; seu projeto motor não visa mais alguém no mundo, visa meu antebraço, meu braço e meus dedos, e os visa enquanto eles são capazes de romper sua inserção no mundo dado e de desenhar em torno de mim uma situação fictícia, ou mesmo enquanto, sem nenhum parceiro fictício, eu considero curiosamente essa estranha máquina de significar e a faço funcionar por diversão. Intro III Essa função de “projeção” ou de “evocação” (no sentido em que o médium evoca e faz aparecer um ausente) é também o que torna possível o movimento abstrato: pois para possuir **meu corpo** fora de qualquer tarefa urgente, para brincar com ele ao meu bel-prazer, para traçar no ar um movimento que só é definido por uma ordem verbal ou por necessidades morais, é preciso também que eu inverta a relação natural entre o corpo e a circunvizinhança e que apareça uma produtividade humana através da espessura do ser. Intro III Meu apartamento não é para mim uma série de imagens fortemente associadas, ele só permanece como domínio familiar em torno de mim se ainda tenho suas distâncias e suas direções “nas mãos” ou “nas pernas”, e se uma multidão de fios intencionais parte de **meu corpo** em direção a ele. Intro III Enquanto tenho um corpo e através dele ajo no mundo, para mim o espaço e o tempo não são uma soma de pontos justapostos, nem tampouco uma infinidade de relações das quais minha consciência operaria a síntese e em que ela implicaria **meu corpo**; não estou no espaço e no tempo, não penso o espaço e o tempo; eu sou no espaço e no tempo, **meu corpo** aplica-se a eles e os abarca. Intro III **Meu corpo** tem seu mundo ou compreende seu mundo sem precisar passar por “representações”, sem subordinar-se a uma “função simbólica” ou “objetivante”. Intro III Isso significa que ele não é apenas uma experiência de **meu corpo**, mas ainda uma experiência de **meu corpo** no mundo, e que é ele que dá um sentido motor às ordens verbais. Intro III Ele já está desenhado na estrutura de **meu corpo**, ele é seu correlativo inseparável. “ Intro III Se tenho o hábito de dirigir um carro, eu o coloco em uma rua e vejo que “posso passar” sem comparar a largura da rua com a dos para-choques, assim como transponho uma porta sem comparar a largura da porta com a de **meu corpo**. Intro III Correlativamente, a porta do metrô, o caminho tornaram-se potências constrangedoras e aparecem de um só golpe como praticáveis ou impraticáveis para **meu corpo** com seus anexos. Intro III Quando levo a mão ao meu joelho, a cada momento do movimento experimento a realização de uma intenção que não visava meu joelho enquanto ideia ou mesmo enquanto objeto, mas enquanto parte presente e real de **meu corpo** vivo, quer dizer, finalmente, enquanto ponto de passagem de meu movimento perpétuo em direção a um mundo. Intro III As principais regiões de **meu corpo** são consagradas a ações, elas participam de seu valor, e trata-se do mesmo problema saber por que o senso comum põe o lugar do pensamento na cabeça e como o organista distribui as significações musicais no espaço do órgão. Intro III **Meu corpo** é esse núcleo significativo que se comporta como uma função geral e que todavia existe e é acessível à doença. Intro III Se todavia os doentes sentem o espaço de seu braço como estranho, se em geral eu posso sentir o espaço de **meu corpo** enorme ou minúsculo, a despeito do testemunho de meus sentidos, é porque existe uma presença e uma extensão afetivas das quais a espacialidade objetiva não é condição suficiente, como o mostra a anosognosia, e nem mesmo condição necessária, como o mostra o braço fantasma. Intro IV As diferentes partes de **meu corpo** — seus aspectos visuais, táteis e motores — não são simplesmente coordenadas. Intro IV Da mesma forma, quando estou sentado à minha mesa, posso “visualizar” instantaneamente as partes de **meu corpo** que ela me esconde. Intro IV Esse poder me pertence até mesmo para as partes de **meu corpo** que nunca vi. Intro IV Não traduzo os “dados do tocar” para “a linguagem da visão” ou inversamente; não reúno as partes de **meu corpo** uma a uma; essa tradução e essa reunião estão feitas de uma vez por todas em mim: elas são meu próprio corpo. Intro IV Mas eu não estou diante de **meu corpo**, estou em **meu corpo**, ou antes sou **meu corpo**. Intro IV O que reúne as “sensações táteis” de minha mão e as liga às percepções visuais da mesma mão, assim como às percepções dos outros segmentos do corpo, é um certo estilo dos gestos de minha mão, que implica um certo estilo dos movimentos de meus dedos e contribui, por outro lado, para uma certa configuração de **meu corpo**. Intro IV Um espetáculo tem para mim uma significação sexual não quando me represento, mesmo confusamente, sua relação possível aos órgãos sexuais ou aos estados de prazer, mas quando ele existe para **meu corpo**, para essa potência sempre prestes a armar os estímulos dados em uma situação erótica, e a ajustar a ela uma conduta sexual. Intro V Não se pode dizer que a situação de fato assim criada seja a simples consciência de uma situação, pois isso representaria dizer que a recordação, o braço ou a perna “esquecidos” estão expostos à minha consciência, estão presentes e próximos para mim do mesmo modo que as regiões “conservadas” de meu passado ou de **meu corpo**. Intro V Mas, justamente porque pode fechar-se ao mundo, **meu corpo** é também aquilo que me abre ao mundo e nele me põe em situação. Intro V Mesmo se me absorvo na experiência de **meu corpo** e na solidão das sensações, não chego a suprimir toda referência de minha vida a um mundo, a cada instante alguma intenção brota novamente de mim, mesmo que seja em direção aos objetos que me circundam e caem sob meus olhos, ou em direção aos instantes que sobrevêm e impelem para o passado aquilo que acabo de viver. Intro V O instante do tempo natural não fixa nada, ele deve imediatamente recomeçar e com efeito recomeça em um outro instante, as funções sensoriais por si sós não me fazem ser no mundo: quando me absorvo em **meu corpo**, meus olhos só me dão o invólucro sensível das coisas e dos outros homens, as próprias coisas são cunhadas de irrealidade, os comportamentos se decompõem no absurdo, o próprio presente, como no falso reconhecimento, perde sua consistência e muda para a eternidade. Intro V Posso muito bem ausentar-me do mundo humano e abandonar a existência pessoal, mas é apenas para reencontrar em **meu corpo** a mesma potência, dessa vez sem nome, pela qual estou condenado ao ser. Intro V A importância atribuída ao corpo, as contradições do amor ligam-se portanto a um drama mais geral que se refere à estrutura metafísica de **meu corpo**, ao mesmo tempo objeto para o outro e sujeito para mim. Intro V Basta que eu possua sua essência articular e sonora como uma das modulações, um dos usos possíveis de **meu corpo**. Intro VI Reporto-me à palavra assim como minha mão se dirige para o lugar de **meu corpo** picado por um inseto; a palavra é um certo lugar de meu mundo linguístico, ela faz parte de meu equipamento, só tenho um meio de representá-la para mim, é pronunciá-la, assim como o artista só tem um meio de representar-se a obra na qual trabalha: é preciso que ele a faça. Intro VI Assim como Pedro imaginado é apenas uma das modalidades de meu ser no mundo, a imagem verbal é uma das modalidades de minha gesticulação fonética, dada com muitas outras na consciência global de **meu corpo**. Intro VI Tudo se passa como se a intenção do outro habitasse **meu corpo** ou como se minhas intenções habitassem o seu. Intro VI Esse objeto torna-se atual e é plenamente compreendido quando os poderes de **meu corpo** se ajustam a ele e o recobrem. Intro VI Engajo-me com **meu corpo** entre as coisas, elas coexistem comigo enquanto sujeito encarnado, e essa vida nas coisas não tem nada de comum com a construção dos objetos científicos. Intro VI É por **meu corpo** que compreendo o outro, assim como é por **meu corpo** que percebo “coisas”. Intro VI O gesto fonético realiza, para o sujeito falante e para aqueles que o escutam, uma certa estrutura da experiência, uma certa modulação da existência, exatamente como um comportamento de **meu corpo** investe os objetos que me circundam, para mim e para o outro, de uma certa significação. Intro VI Portanto, sou **meu corpo**, exatamente na medida em que tenho um saber adquirido e, reciprocamente, **meu corpo** é como um sujeito natural, como um esboço provisório de meu ser total. Intro VI Quando caminho em meu apartamento, os diferentes aspectos sob os quais ele se apresenta a mim não poderiam aparecer-me como os perfis de uma mesma coisa se eu não soubesse que cada um deles representa o apartamento visto daqui ou visto dali, se eu não tivesse consciência de meu próprio movimento e de **meu corpo** como idêntico através das fases desse movimento. II VI Do ponto de vista de **meu corpo**, nunca vejo iguais as seis faces do cubo, mesmo se ele é de vidro, e todavia a palavra “cubo” tem um sentido; o cubo ele mesmo, o cubo na verdade, para além de suas aparências sensíveis, tem suas seis faces iguais. II VI O objeto e **meu corpo** formariam um sistema, mas tratar-se-ia de um feixe de correlações objetivas e não, como dizíamos há pouco, de um conjunto de correspondências vividas. II VI A coisa e o mundo me são dados com as partes de **meu corpo** não por uma “geometria natural”, mas em uma conexão viva comparável, ou antes idêntica à que existe entre as partes de meu próprio corpo. II VI No duplo que está fora dele, o doente sente-se assim como, em um elevador que sobe e se detém bruscamente, eu sinto a substância de **meu corpo** escapar de mim por minha cabeça e ultrapassar os limites de **meu corpo** objetivo. II VI Toda percepção exterior é imediatamente sinônima de uma certa percepção de **meu corpo**, assim como toda percepção de **meu corpo** se explicita na linguagem da percepção exterior. II VI Ele é um certo campo ou uma certa atmosfera oferecida à potência de meus olhos e de todo o **meu corpo**. II I A cor, antes de ser vista, anuncia-se então pela experiência de uma certa atitude do corpo que só convém a ela e a determina com precisão: “Há um deslizamento de alto a baixo em **meu corpo**, portanto isso não pode ser verde, só pode ser azul; mas de fato não vejo o azul”, diz um outro paciente. II I Assim, antes de ser um espetáculo objetivo, a qualidade deixa-se reconhecer por um tipo de comportamento que a visa em sua essência, e é por isso que, a partir do momento em que **meu corpo** adota a atitude do azul, eu obtenho uma quase-presença do azul. II I Da mesma maneira, dou ouvidos ou olho à espera de uma sensação e, repentinamente, o sensível toma meu ouvido ou meu olhar, eu entrego uma parte de **meu corpo** ou mesmo **meu corpo** inteiro a essa maneira de vibrar e de preencher o espaço que é o azul ou o vermelho. II I Porque sei que a luz atinge meus olhos, que os contatos se fazem pela pele, que meu sapato fere meu pé, disperso em **meu corpo** as percepções que pertencem à minha alma, coloco a percepção no percebido. II I Mas o termo que ela visa só é reconhecido cegamente pela familiaridade de **meu corpo** com ele, não é constituído em plena clareza, mas reconstituído ou retomado por um saber que permanece latente e que lhe deixa sua opacidade e sua ecceidade. II I Sem a exploração de meu olhar ou de minha mão, e antes que **meu corpo** se sincronize a ele, o sensível é apenas uma solicitação vaga. “ II I Assim, um sensível que vai ser sentido apresenta ao **meu corpo** uma espécie de problema confuso. II I Mas do céu percebido ou sentido, subtendido por meu olhar que o percorre e o habita, meio de uma certa vibração vital que **meu corpo** adota, pode-se dizer que ele existe para si no sentido em que não é feito de partes exteriores, em que cada parte do conjunto é “sensível” àquilo que se passa em todas as outras e as “conhece dinamicamente”. II I Sem dúvida, o conhecimento me ensina que a sensação não aconteceria sem uma adaptação de **meu corpo**, por exemplo que não haveria contato determinado sem um movimento de minha mão. II I Conforme eu fixe um objeto ou deixe meus olhos divergirem, ou enfim me abandone por inteiro ao acontecimento, a mesma cor me aparece como cor superficial (Oberflächenfarbe) — ela está em um lugar definido do espaço, estende-se sobre o objeto — ou então ela se torna cor atmosférica (Raumfarbe) e difusa em torno do objeto; ou então eu a sinto em meu olho como uma vibração de meu olhar; ou enfim ela comunica a todo o **meu corpo** uma mesma maneira de ser, ela me preenche e não merece mais o nome de cor. II I Da mesma maneira, há um som objetivo que ressoa fora de mim no instrumento, um som atmosférico que está entre o objeto e **meu corpo**, um som que vibra em mim “como se eu me tivesse tomado a flauta ou o pêndulo”; e enfim um último estágio em que o elemento sonoro desaparece e torna-se a experiência, aliás muito precisa, de uma modificação de todo o **meu corpo**. II I A experiência sensorial só dispõe de uma margem estreita: ou o som e a cor, por seu arranjo próprio, desenham um objeto, o cinzeiro, o violão, e esse objeto fala de uma só vez a todos os sentidos; ou então, na outra extremidade da experiência, o som e a cor são recebidos em **meu corpo**, e torna-se difícil limitar minha experiência a um único registro sensorial: espontaneamente, ela transborda para todos os outros. II I Dizendo que essa intencionalidade não é um pensamento, queremos dizer que ela não se efetua na transparência de uma consciência, e que ela toma por adquirido todo o saber latente que **meu corpo** tem de si mesmo. II I A visão dos sons ou a audição das cores se realizam como se realiza a unidade do olhar através dos dois olhos: enquanto **meu corpo** é não uma soma de órgãos justapostos, mas um sistema sinérgico do qual todas as funções são retomadas e ligadas no movimento geral do ser no mundo, enquanto ele é a figura imobilizada da existência. II I Há um sentido em dizer que vejo sons ou que ouço cores, se a visão ou a audição não são a simples posse de um quale opaco, mas a experiência de uma modalidade da existência, a sincronização de **meu corpo** a ela, e o problema das sinestesias recebe um começo de solução se a experiência da qualidade é a de um certo modo de movimento ou a de uma conduta. II I Junto ao espectador, os gestos e as falas não são subsumidos a uma significação ideal, mas a fala retoma o gesto, e o gesto retoma a fala, eles se comunicam através de **meu corpo**, assim como os aspectos sensoriais de **meu corpo**, eles são imediatamente simbólicos um do outro, porque **meu corpo** é justamente um sistema acabado de equivalências e de transposições intersensoriais. II I **Meu corpo** é o lugar, ou antes a própria atualidade do fenômeno de expressão (Ausdruck), nele a experiência visual e a experiência auditiva, por exemplo, são pregnantes uma da outra, e seu valor expressivo funda a unidade antepredicativa do mundo percebido e, através dela, a expressão verbal (Darstellung) e a significação intelectual (Bedeutung). II I **Meu corpo** é a textura comum de todos os objetos e é, pelo menos em relação ao mundo percebido, o instrumento geral de minha “compreensão”. II I Antes de ser o índice de um conceito, primeiramente ela é um acontecimento que se apossa de **meu corpo**, e suas ações sobre **meu corpo** circunscrevem a zona de significação à qual ela se reporta. II I Mas repentinamente observo que a palavra abre uma passagem em **meu corpo**. II I É o sentimento — difícil de descrever — de uma espécie de plenitude atordoante que invade **meu corpo** e que ao mesmo tempo dá à minha cavidade bucal uma forma esférica. II I Em suma, **meu corpo** não é apenas um objeto entre todos os outros objetos, um complexo de qualidades entre outros, ele é um objeto sensível a todos os outros, que ressoa para todos os sons, vibra para todas as cores, e que fornece às palavras a sua significação primordial através da maneira pela qual ele as acolhe. II I Ele é apenas o **meu corpo** que se prepara para o calor e que desenha, por assim dizer, a sua forma. II I Da mesma maneira, quando nomeiam diante de mim uma parte de **meu corpo**, ou quando eu represento para mim, sinto no ponto correspondente uma quase-sensação de contato, que é apenas a emergência dessa parte de **meu corpo** no esquema corporal total. II I Com efeito, de duas coisas uma: ou eu me considero no meio do mundo, inserido nele por **meu corpo**, que se deixa investir por relações de causalidade, e então “os sentidos” e “o corpo” são aparelhos materiais e não conhecem absolutamente nada; o objeto forma uma imagem nas retinas, e no centro ótico a imagem retiniana se desdobra em uma outra imagem, mas ali só existem coisas para ver e ninguém que veja, somos indefinidamente reenviados de uma etapa corporal à outra, supomos no homem um “pequeno homem” e neste um outro, sem nunca chegar à visão. II I Meu ato de percepção, considerado na sua ingenuidade, não efetua ele mesmo essa síntese, ele se beneficia de um trabalho já feito, de uma síntese geral constituída de uma vez por todas, é isso que exprimo ao dizer que percebo com **meu corpo** ou com meus sentidos, **meu corpo**, meus sentidos, sendo justamente este saber habitual do mundo, essa ciência implícita ou sedimentada. II I Enfim, o que é viver a unidade do objeto ou do sujeito, senão fazê-la? Mesmo se se supõe que ela aparece com o fenômeno de **meu corpo**, não é preciso que eu a pense nele para encontrá-la ali, e que eu faça a síntese desse fenômeno para ter sua experiência? — Nós não procuramos extrair o para si do em si, não retornamos a uma forma qualquer de empirismo, e o corpo ao qual confiamos a síntese do mundo percebido não é um puro dado, uma coisa passivamente acolhida. II I Repentinamente, fixo a mesa que ainda não está ali, olho à distância quando ainda não há profundidade, **meu corpo** centra-se em um objeto ainda virtual e dispõe suas superfícies sensíveis de maneira a torná-lo atual. II I Em cada movimento de fixação, **meu corpo** ata em conjunto um presente, um passado e um futuro, ele secreta tempo, ou antes torna-se este lugar da natureza em que, pela primeira vez, os acontecimentos, em lugar de impelirem-se uns aos outros no ser, projetam em torno do presente um duplo horizonte de passado e de futuro e recebem uma orientação histórica. II I **Meu corpo** toma posse do tempo, ele faz um passado e um futuro existirem para um presente, ele não é uma coisa, ele faz o tempo em lugar de padecê-lo. II I No primeiro caso, **meu corpo** e as coisas, suas relações concretas segundo o alto e o baixo, a direita e a esquerda, o próximo e o distante podem aparecer-me como uma multiplicidade irredutível; no segundo caso, descubro uma capacidade única e indivisível de traçar o espaço. II II Mas todavia **meu corpo** pode mover-se sem arrastar consigo o alto e o baixo, como quando me deito no chão, e a experiência de Wertheimer mostra que a direção objetiva de **meu corpo** pode formar um ângulo apreciável com a vertical aparente do espetáculo. II II O que importa para a orientação do espetáculo não é **meu corpo** tal como de fato ele é, enquanto coisa no espaço objetivo, mas **meu corpo** enquanto sistema de ações possíveis, um corpo virtual cujo “lugar” fenomenal é definido por sua tarefa e por sua situação. II II **Meu corpo** está ali onde ele tem algo a fazer. II II Portanto, ele é uma certa posse do mundo por **meu corpo**, um certo poder de **meu corpo** sobre o mundo. II II Projetado, na ausência de pontos de ancoragem, exclusivamente pela atitude de **meu corpo**, como nas experiências de Nagel, determinado, quando o corpo está entorpecido, exclusivamente pelas exigências do espetáculo, como na experiência de Wertheimer, normalmente ele aparece na junção de minhas intenções motoras e de meu campo perceptivo, quando **meu corpo** efetivo vem coincidir com o corpo virtual que é exigido pelo espetáculo efetivo, e o espetáculo efetivo com o ambiente que **meu corpo** projeta em torno de si. II II Ele se instala quando, entre **meu corpo** enquanto potência de certos gestos, enquanto exigência de certos níveis privilegiados, e o espetáculo percebido enquanto convite aos mesmos gestos e teatro das mesmas ações, se estabelece um pacto que me dá usufruto do espaço assim como dá às coisas potência direta sobre **meu corpo**. II II A constituição de um nível espacial é apenas um dos meios da constituição de um mundo pleno: **meu corpo** tem poder sobre o mundo quando minha percepção me oferece um espetáculo tão variado e tão claramente articulado quanto possível, e quando minhas intenções motoras, desdobrando-se, recebem do mundo as respostas que esperam. II II Esse máximo de nitidez na percepção e na ação define um solo perceptivo, um fundo de minha vida, um ambiente geral para a coexistência de **meu corpo** e do mundo. II II Esse espírito cativo ou natural é o **meu corpo**, não o corpo momentâneo que é o instrumento de minhas escolhas pessoais e se fixa em tal ou tal mundo, mas o sistema de “funções” anônimas que envolvem qualquer fixação particular em um projeto geral. II II Eu a veria se estivesse no lugar de um espectador lateral, que pode abarcar com o olhar a série dos objetos dispostos diante de mim, enquanto para mim eles se escondem uns aos outros — ou que pode ver a distância de **meu corpo** ao primeiro objeto, enquanto para mim essa distância está recolhida em um ponto. II II Mas, se posso remontar da grandeza aparente à sua significação, é sob a condição de saber que existe um mundo de objetos indeformáveis, que, diante desse mundo, **meu corpo** é como um espelho e que, assim como a imagem do espelho, aquela que se forma no corpo-tela é exatamente proporcional ao intervalo que o separa do objeto. II II Se posso compreender a convergência como um signo da distância, é sob a condição de representar-me meus olhares, assim como as duas bengalas do cego, tanto mais inclinados um sobre o outro quanto mais próximo está o objeto; em outros termos, sob a condição de inserir meus olhos, **meu corpo** e o exterior em um mesmo espaço objetivo. II II Repouso e movimento aparecem entre um objeto que por si não está determinado segundo o repouso e o movimento e **meu corpo** que, enquanto objeto, também não o está, quando **meu corpo** se ancora em certos objetos. II II Vê-se o que o pensamento objetivo sempre lhe oporá: as descrições teriam valor filosófico? Quer dizer: elas nos ensinam algo que diga respeito à própria estrutura da consciência, ou só nos dão conteúdos da experiência humana? O espaço do sonho, o espaço mítico, o espaço esquizofrênico, eles são espaços verdadeiros, podem ser e ser pensados por si mesmos, ou pressupõem, como condição de sua possibilidade, o espaço geométrico e, com ele, a pura consciência constituinte que o desdobra? A esquerda, região do infortúnio e presságio nefasto para o primitivo — ou, em **meu corpo**, a esquerda como lado de minha inabilidade —, só se determina como direção se, primeiramente, sou capaz de pensar sua relação com a direita, e é essa relação que finalmente dá um sentido espacial aos termos entre os quais ela se estabelece. II II Minha percepção total não é feita dessas percepções analíticas, mas ela sempre pode dissolver-se nelas, e **meu corpo**, que por meus habitus assegura minha inserção no mundo humano, justamente só o faz projetando-me primeiramente em um mundo natural que sempre transparece sob o outro, assim como a tela sob o quadro, e lhe dá um ar de fragilidade. II II Nesse sentido, a ilusão, assim como a imagem, não é observável, quer dizer, **meu corpo** não tem poder sobre ela e não posso desdobrá-la diante de mim por movimentos de exploração. II II Digo que percebo corretamente quando **meu corpo** tem um poder preciso sobre o espetáculo, mas isso não quer dizer que alguma vez meu poder seja total; ele só o seria se eu pudesse reduzir ao estado de percepção articulada todos os horizontes interiores e exteriores do objeto, o que por princípio é impossível. II II Uma forma ou uma grandeza apenas aparente é aquela que ainda não está situada no sistema rigoroso que formam em conjunto os fenômenos e **meu corpo**. II III Se aproximo de mim o objeto ou se o faço girar em meus dedos para “vê-lo melhor”, é porque para mim cada atitude de **meu corpo** é de um só golpe potência de um certo espetáculo, porque para mim cada espetáculo é aquilo que é em uma certa situação cinestésica; em outros termos, porque diante das coisas **meu corpo** está permanentemente em posição para percebê-las e, inversamente, porque as aparências são sempre envolvidas por mim em uma certa atitude corporal. II III Ao contrário, se queremos descrevê-los, é preciso dizer que minha experiência desemboca nas coisas e se transcende nelas, porque ela sempre se efetua no quadro de uma certa montagem em relação ao mundo, que é a definição de **meu corpo**. II III O objeto é circular se, igualmente próximo de mim por todos os seus lados, não impõe ao movimento de meu olhar nenhuma mudança de curvatura, ou se aquelas que ele lhe impõe são imputáveis à apresentação oblíqua, segundo a ciência do mundo que me é dada com **meu corpo**. II III Portanto, é verdade que toda percepção de uma coisa, de uma forma ou de uma grandeza como reais, toda constância perceptiva reenvia à posição de um mundo e de um sistema da experiência em que **meu corpo** e os fenômenos estejam rigorosamente ligados. II III Nossa instalação em um certo ambiente colorido, com a transposição de todas as relações de cores que ela acarreta, é uma operação corporal; só posso realizá-la entrando na nova atmosfera, porque **meu corpo** é meu poder geral de habitar todos os ambientes do mundo, a chave de todas as transposições e de todas as equivalências que o mantêm constante. II III Correlativamente, enquanto sujeito do tato, não posso gabar-me de estar em todas as partes e em parte alguma, aqui não posso esquecer que é através de **meu corpo** que vou ao mundo, a experiência tátil se faz “adiante” de mim e não é centrada em mim. II III Não sou eu que toco, é **meu corpo**; quando toco, não penso um diverso, minhas mãos encontram um certo estilo que faz parte de suas possibilidades motoras, e é isso que se quer dizer quando se fala de um campo perceptivo: só posso tocar eficazmente se o fenômeno encontra um eco em mim, se ele concorda com uma certa natureza de minha consciência, se o órgão que vem ao seu encontro está sincronizado com ele. II III Não apenas me sirvo de meus dedos e de **meu corpo** inteiro como de um só órgão, mas ainda, graças a essa unidade do corpo, as percepções táteis obtidas por um órgão são imediatamente traduzidas na linguagem dos outros órgãos; por exemplo, o contato de nossas costas ou de nosso peito com o linho ou a lã permanece na recordação sob a forma de um contato manual, e, mais geralmente, na recordação podemos tocar um objeto com partes de nosso corpo que nunca o tocaram efetivamente. II III Vejo uma cor de superfície porque tenho um campo visual e porque o arranjo do campo conduz meu olhar até ela; percebo uma coisa porque tenho um campo de existência e porque cada fenômeno aparecido polariza em direção a si todo o **meu corpo** enquanto sistema de potência perceptivas. II III Assim, a coisa é o correlativo de **meu corpo** e, mais geralmente, de minha existência, da qual **meu corpo** é apenas a estrutura estabilizada, ela se constitui no poder de **meu corpo** sobre ela, ela não é em primeiro lugar uma significação para o entendimento, mas uma estrutura acessível à inspeção do corpo, e, se queremos descrever o real tal como ele nos aparece na experiência perceptiva, nós o encontramos carregado de predicados antropológicos. II III É por uma terceira redução que se passa da coisa visual ao aspecto perspectivo: observo que todas as faces do dado não podem cair sob meus olhos, que entre elas algumas sofrem deformações: Por uma última redução, chego enfim à sensação, que não é mais uma propriedade da coisa, nem mesmo do aspecto perspectivo, mas uma modificação de **meu corpo**. II III Como compreender ao mesmo tempo que a coisa seja o correlativo de **meu corpo** cognoscente e que ela o negue? O que é dado não é somente a coisa, mas a experiência da coisa, uma transcendência em um rastro de subjetividade, uma natureza que transparece através de uma história. II III Surdamente eu sabia que a percepção global perpassava e utilizava meu olhar, o seixo me aparecia em plena luz diante das trevas atulhadas de órgãos de **meu corpo**. II III É isso que nós exprimimos ao dizer que percebo com **meu corpo**. II III Mais geralmente, existe uma lógica do mundo que **meu corpo** inteiro esposa e pela qual coisas intersensoriais se tornam possíveis para nós. II III **Meu corpo**, enquanto é capaz de sinergia, sabe o que significa para o conjunto de minha experiência tal cor a mais ou a menos, de um só golpe ele apreende sua incidência na apresentação e o sentido do objeto. II III Da mesma maneira, embora passo a passo cada passado esteja inteiro encerrado no passado recente que imediatamente lhe sucedeu, graças ao encaixamento das intencionalidades, o passado se degrada e meus primeiros anos se perdem na existência geral de **meu corpo**, do qual sei apenas que ele já estava diante das cores, dos sons e de uma natureza semelhante àquela que presentemente vejo. II III **Meu corpo** e o mundo não são mais objetos coordenados um ao outro por relações funcionais do gênero daquelas que a física estabelece. II IV Eu tenho o mundo como indivíduo inacabado através de **meu corpo** enquanto potência desse mundo, e tenho a posição dos objetos por aquela de **meu corpo** ou, inversamente, a posição de **meu corpo** por aquela dos objetos, não em uma implicação lógica e como se determina uma grandeza desconhecida por suas relações objetivas com grandezas dadas, mas em uma implicação real, e porque **meu corpo** é movimento em direção ao mundo, o mundo, ponto de apoio de **meu corpo**. II IV O ideal do pensamento objetivo — o sistema da experiência como feixe de correlações físico-matemáticas — está fundado em minha percepção do mundo como indivíduo em concordância consigo mesmo, e quando a ciência busca integrar **meu corpo** às relações do mundo objetivo é porque ela procura, à sua maneira, traduzir a sutura entre **meu corpo** fenomenal e o mundo primordial. II IV Pela reflexão fenomenológica, encontro a visão não como “pensamento de ver”, segundo a expressão de Descartes, mas como olhar em posse de um mundo visível, e é por isso que aqui pode haver para mim um olhar de outrem, este instrumento expressivo que chamamos de um rosto pode trazer uma existência assim como minha existência é trazida pelo aparelho cognoscente que é **meu corpo**. II IV Entre minha consciência e **meu corpo** tal como eu o vivo, entre este corpo fenomenal e aquele de outrem tal como eu o vejo do exterior, existe uma relação interna que faz outrem aparecer como o acabamento do sistema. II IV Em torno do corpo percebido cava-se um turbilhão para onde **meu corpo** é atraído e como que aspirado: nessa medida, ele não é mais somente meu, ele não está presente somente a mim, ele está presente a X, a esta outra conduta que neste começa a se desenhar. II IV Sinto **meu corpo** como potência de certas condutas e de um certo mundo, sou dado a mim mesmo como um certo poder sobre o mundo; ora, é justamente **meu corpo** que percebe o corpo de outrem, e ele encontra ali como que um prolongamento miraculoso de suas próprias intenções, uma maneira familiar de tratar o mundo; doravante, como as partes de **meu corpo** em conjunto formam um sistema, o corpo de outrem e o meu são um único todo, o verso e o reverso de um único fenômeno, e a existência anônima da qual **meu corpo** é a cada momento o rastro habita doravante estes dois corpos ao mesmo tempo. II IV Quer se trate de **meu corpo**, do mundo natural, do passado, do nascimento ou da morte, a questão é sempre a de saber como posso ser aberto a fenômenos que me ultrapassam e que, todavia, só existem na medida em que os retomo e os vivo, como a presença a mim mesmo (Urpräsenz), que me define e condiciona toda presença alheia, é ao mesmo tempo uma des-presentação (Entgegenwärtingung) e me lança fora de mim. II IV Ou o Cogito é esse pensamento que se formou há três séculos no espírito de Descartes, ou é o sentido dos textos que ele nos deixou, ou enfim uma verdade eterna que transparece através deles, de qualquer maneira ele é um ser cultural para o qual meu pensamento antes se dirige do que o abarca, assim como **meu corpo** em um ambiente familiar se orienta e caminha entre os objetos sem que eu precise representá-los expressamente. III I O papel, as letras no papel, meus olhos e **meu corpo** só estão ali como o mínimo de encenação necessária a alguma operação invisível. III I A palavra “granizo”, quando eu a conheço, não é um objeto que eu reconheça por uma síntese de identificação, ela é um certo uso de meu aparelho de fonação, uma certa modulação de **meu corpo** enquanto ser no mundo, sua generalidade não é a generalidade da ideia, mas a de um estilo de conduta que **meu corpo** “compreende” enquanto ele é uma potência de fabricar comportamentos e em particular fonemas. III I A palavra nunca foi inspecionada, analisada, conhecida, constituída, mas apanhada e assumida por uma potência falante e, em última análise, por uma potência motora que me foi dada com a primeira experiência de **meu corpo** e de seus campos perceptivos e práticos. III I Não é apenas a noção do corpo que, através da noção do presente, é necessariamente ligada à noção do para si, mas a existência efetiva de **meu corpo** é indispensável à existência de minha “consciência”. III II Se eu recoloco minhas orelhas, minhas unhas e meus pulmões em **meu corpo** vivo, eles não aparecerão mais como detalhes contingentes. III II Quer eu tenha ou não decidido escalá-las, estas montanhas me parecem grandes porque ultrapassam o poder de **meu corpo**, e mesmo se acabo de ler Micromegas não posso fazer com que para mim elas sejam pequenas. III III A verdadeira reflexão me dá a mim mesmo não como subjetividade ociosa e inacessível, mas como idêntica à minha presença ao mundo e a outrem, tal como eu a realizo agora: sou tudo aquilo que vejo, sou um campo intersubjetivo, não a despeito de **meu corpo** e de minha situação histórica, mas ao contrário sendo esse corpo e essa situação e através deles todo o resto. III III